Simplesmente Tita - 3º Capítulo



3º Capítulo

Quando passei alguns dias de atestado em razão de uma virose, vovó me presenteou com um conjunto de plástico do qual vinham um espelhinho quadrado de mão, três escovas de cabelo, um pente e alguns elásticos coloridos.
Para uma garotinha de 7 anos, era ostentação brincar de cabeleireira com as amiguinhas no Dia do Brinquedo, toda sexta-feira, depois do recreio.
— Elza, você me ensina a fazer essas trancinhas?
— O que você não me pede chorando, que eu não faço sorrindo? — Elza apertou a minha mão.
Quando me vi de marias-chiquinhas trançadas no espelhinho de mão, o coraçãozinho vibrou de alegria, pois me sentia igual às minhas amiguinhas. Pouco me importava a cor dos olhos, a textura dos fios capilares, as questões sociais que queriam nos segregar, nós passávamos por cima das convenções porque a força de uma amizade verdadeira supera todos os obstáculos.

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Nunca levei minha querida Ciça para o Dia do Brinquedo por receio de que as meninas pudessem fazer alguma maldade com a boneca. Bruna tinha uma Barbie loira e a professora repetia toda semana que queria ter gêmeas e torcia para que elas fossem fisicamente parecidas com Cássia e a melhor amiga. Por outro lado, Elza e Eliza mal tinham brinquedos.
Quando a trupe não brincava de “aula da professora Dulce”, monopolizava o aparelho de rádio para dançar em frente à lousa e arrancar suspiros da professora. Os meninos se distraíam com carrinhos, aviões, bolas ou jogavam bolinhas de gude. O trio das excluídas, por sua vez, divertia-se no salão de beleza imaginário.

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Numa sexta-feira que até hoje dá um nó na garganta só de lembrar, saí com as meninas para lanchar, porém, o divertimento acabou antes de começar: quando voltamos para a sala e eu peguei o kit de beleza de dentro da mochila, não o encontrei.
— Sumiu! O kit sumiu!
— Calma, Tita — pediu Eliza —, procura de novo…
Vasculhei a mochila e não encontrei nenhum rastro do espelho, das escovas de cabelo ou dos elásticos coloridos. Desatei em lágrimas.
— O que foi, menina manhosa? — Ralhou a Prof.ª Dulce, que não gostava de mim, mas gostava menos ainda de Elza e Eliza. — Só sabe chorar, chorar, chorar, não sabe fazer outra coisa, só vive criando problema, encrenca…
— Meu conjunto de cabeleireira sumiu.
— Quem é que manda ser relaxada?
— Por favorzinho, professora, me ajuda! Pergunta se alguém viu o meu conjunto. — Implorei. — Se eu voltar para casa sem ele, minha mãe vai me bater.
— E eu com isso?
Elza cerrou os punhos do lado das pernas para não falar umas verdades àquela professora incapaz de ter um pingo de empatia por mim. Eu só tinha sete anos.
— Diga-me com quem tu andas… — Debochou a docente, arqueando as sobrancelhas, insinuando que o sumiço do kit de beleza fosse obra de Elza e Eliza, racismo descarado.
— Está me chamando de ladrona, é?
Quando o pavio de Elza estourava, era o tal do salve-se quem puder.
— Escuta aqui, você está me chamando de ladrona, está? Não está?
Elza, que não era de engolir desaforo, pegou a pasta plástica já encardida pelo tempo e despejou todo o conteúdo em cima da carteira.
— Anda, agora que acusou, mexe aí e vê se encontra o conjunto da Tita, porque para falar que roubei alguma coisa, tem que ter me visto roubar, sabia? Você me viu roubar? Viu? Pois para me olhar com essa cara, tem que provar o que falou, ok? Sua bruxa racista!
— Menina mal-educada! — Retrucou Dulce.
— Com você, tenho o prazer de ser mal-educada!
— Está querendo dar um passeio na sala da Norma, é?
— E aí? — Quis saber Elza. — Achou o conjunto? Agora que acusou, vá em frente. Achou ou não achou?
Dulce só lançou um olhar de desprezo para Elza e ordenou que ela guardasse os pertences, sem perder o hábito de resmungar o quanto as irmãs do educandário (e eu também entrava na conta) eram insuportáveis. A contragosto, interrompeu a brincadeira das crianças e revistou todas as mochilas, bolsinhas e pastas plásticas.
— Minha mãe vai me bater! — Era tudo que eu, sentada no chão ao lado das irmãs do educandário, sempre ao centro delas, sabia dizer. — Ela vai me bater!
— Não chora, Tita! — Pediu Eliza, fazendo carinhos nas minhas costas. — A gente vai achar seu conjunto…
— Cala a boca, menina manhosa! — Dulce repreendeu-me, abanando as mãos como se estivesse se controlando para não me bater. — Sua voz me irrita! Tudo em você me irrita! Por que você não faz o favor de crescer logo e sair do meu caminho?
Cássia erguia a cabeça para gargalhar e não perdia a oportunidade de me humilhar. Naquelas horas, o julgamento de Dulce era outro. Eu não sabia aceitar brincadeiras, tornava a atmosfera problemática, era a responsável pelos infortúnios que me acometiam.
Meire arrebentou um chinelo de dedo nas minhas costas e insultou-me. Naqueles tempos, ela estava mais agressiva do que nunca, eu tremia só de ouvir a voz dela, pois até um alfinete que caísse no chão já era motivo suficiente para implicar comigo. Havia perdido outro emprego.

♏♏♏  

Na estação fria, Elza e Eliza passaram semanas sem pisar na escola. Era responsabilidade inquestionável estar com toda a matéria em dia para poder ajudá-las quando voltassem.

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Atividades recreativas na quadra esportiva, uma ova. Aquilo era sinônimo de uma Tita chorosa fugindo das boladas que Cássia e as outras crianças teimavam em acertar na minha cabeça. Elza nos defendia daquelas monstras protegidas pela conivência da professora, mas sem as irmãs por perto, eu era presa fácil. 
Foi numa fatídica ocasião que acertaram a bola de basquete com tanta força na minha cabeça que só me recordo de cair na calçada da quadra. Para que Meire e Félix se encontrassem no hospital, o incidente foi muito sério. 
Não sei quem me salvou, mas expresso aqui a mais sincera gratidão. Segundo a professora Dulce, machuquei-me “sozinha” durante a aula de Educação Física. 
Se até o lado ruim tem vantagens, passei alguns dias longe daquele inferno. Félix vinha me visitar depois do trabalho e sempre trazia um doce, um brinquedinho, mas não parecia nada satisfeito com a versão da professora, por isso tentava fazer com que eu me abrisse acerca do “acidente”. O nó na garganta fazia as palavras vacilarem, o queixo tremia e os olhos ardiam de tanta dor.
— Você não pode falar para a mãe — implorei. 
— Por quê? ― Rebateu Félix, amuado. 
— Eu não quero mais voltar à escola! 
— Mas por quê? — ele insistiu. 
— Porque… eu não gosto da escola. 
— Sim, eu entendi, mas você precisa me contar o que está acontecendo, princesa. O papai não consegue adivinhar. 
— As meninas sempre jogam a bola para acertar a minha cabeça. — Mordi o lábio inferior sem coragem de fitá-lo: — Todo mundo me trata mal e me chama de favelada na escola. — Chorei abraçada ao papai. 
— Por quê? 
— Eu não tenho um tênis. — Eu não conseguia nem concluir a frase de tanto que chorava porque meu único par de tênis estava muito apertado e a sola tinha se arrebentado, mas o abraço terno de papai me fazia perder o medo de desabafar, ainda que mais tarde Meire me batesse o dobro por "reclamar da vida" e fazer chantagens. 
Félix reparou que eu estava mais magra e abatida e insistiu para que Meire aceitasse uma ajudinha com as despesas de alimentação. Ela era orgulhosa demais para aceitar qualquer coisa que viesse do ex-marido, entretanto, em razão da lastimável situação, engoliu a raiva e concordou com o auxílio. 
— Assim que você melhorar mais um pouquinho, nós vamos sair para você comprar o tênis mais bonito que você encontrar — prometeu-me Félix. 
— Não mime a Renata! — advertiu a troglodita. — Não se preocupe com essa questão, minha mãe vai fazer um crediário para comprar um tênis novo para a Renata. 

♏♏♏ 

Vovó abriu um crediário numa lojinha no centro da cidade, no entanto, o único modelo disponível para o número que eu calçava e dentro do orçamento era uma chuteira. A alegria não foi plena porque eu tinha consciência de que as outras crianças ririam de mim. 
Dito e feito. Além de pisarem em cima do calçado de super-heróis para “batizar”, saíram correndo atrás de mim até que eu tropeçasse em falso e despencasse de um monte de terra onde outras crianças apostavam corrida. 
O sinal do intervalo soou e eu voltei mancando até a sala, chorando. 
— Sempre chorando — admoestou Dulce —, o que foi agora? 
Qualquer pessoa adulta que me visse com ferimentos nos braços e com dificuldades para andar, no mínimo, teria se comprazido. Todavia, Dulce, se fosse minha progenitora, não seria nada diferente de Meire: me bateria por ter me machucado. 
— Não, você não vai entrar! — Declarou ela, impassível. 
— Professora, eu… 
— Eu… — arremedou-me ela. — Eu…  
— Professora, por favorzinho, eu quero entrar! 
— Não vai entrar! O sinal já tocou faz tempo! Olhe só para você, não posso te deixar entrar desse jeito.
Tentei explicar o que se sucedeu, no entanto, a audição de Dulce era bastante seletiva. 
— Pare de inventar problemas porque, na próxima vez que você vier com chantagens, vou te mandar para a sala da Norma para ver se ela dá um jeito em você. 
Dulce fechou a porta e ignorou meus apelos para adentrar a sala. Fim de papo. 

2 comentários:

  1. Ai, meu Deus, como esse Josué é imundo! Dá nojo de gente assim, e olha que tem muitas pessoas no mundo que fazem isso com crianças. Sério, esse velho merece uma surra, morrer seria uma coisa boa pra ele.
    Tadinha da Maria Clara :/

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    1. Imundo mesmo! E está cheio de Josués no mundo, abusando de crianças inocentes, de animais também.
      Como você vê, a Maria Clara tinha motivos para fugir de casa. :/

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