12º
Capítulo
Primeiro dia de aula. Tanta expectativa, ansiedade, tantos planos. Vida nova. Uma nova Tita estava para vir. Eu só tinha dez anos, pouco sabia, mas carregava na alma a certeza de que aquele ano não seria como os outros. Não teria como ser. Jamais.
Curitiba amanheceu nublada. Friozinho, garoa e a sensação de que dois meses de férias ainda era pouco tempo. Nada disso. Hora de levantar. Sentada na ponta da cama, olhei para o uniforme dobrado, cheirei-o, novinho em folha, como eu naquela manhã.
— Hoje começa uma nova vida, Tita. Hoje.
A calça do uniforme era preta com listras laterais brancas, a camiseta era branca, de algodão, na frente havia o emblema da escola, as mangas e o colarinho dela eram pretos. E por acaso (ou não tanto assim), eu sempre gostei de roupas pretas. Apenas a meia soquete com detalhes fofinhos era branca, pois o tênis, um Allstar, era preto.
Vesti a blusa de moletom do Mickey e da Minnie Mouse por cima da camiseta e senti-me maravilhosa, pronta para o que viesse. Almocei, escovei os dentes, verifiquei a mochila para ter certeza de que não me esqueci de nada e quando me dirigi para a porta da frente, Meire alcançou-me:
— Ei, ei, mocinha! Está com a chave aí?
— Estou!
— Identidade? Passagem? Chaves?
— Tudo certinho.
— Nada de falar com estranhos, de aceitar “presentinhos”, nada de ir para a casa de amiguinha nenhuma, você vai à escola estudar e não para farrear. Quero a senhorita aqui em casa, de preferência, ANTES das 18h. Se a senhorita colocar as manguinhas de fora e começar a chegar depois da hora, a conversa será com o chicote, ouviu bem?
Diante dos olhos de coruja, eu assenti e confirmei que faria tudo certinho.
Eu pegaria dois ônibus: o primeiro, na ida, era verde e me conduziria até o Terminal. Desceria com os outros passageiros pela escada subterrânea e do outro lado pegaria aquela linha que me deixaria no tubo a poucos metros do colégio, entretanto, ele se situava em uma avenida movimentada e era preciso ter cautela na hora de atravessar a rua porque erros ou distrações custariam caro, como de fato custavam.
Foi muito reconfortante encontrar outras crianças vestindo aquele uniforme também, algumas de pé, outras sentadas, mas o som das risadas e das conversas aquecia o coração e eu observava meninas que deviam ter mais ou menos a mesma idade que eu, pensava se minhas novas colegas seriam legais comigo e como seriam meus novos professores.
Os portões já estavam abertos quando chegamos. Por tratar-se de uma região bastante arborizada, senti um cheiro que me trazia certa paz: o de mato molhado. Pela calçada caminhei como se fosse meu próprio lar e seria a partir daquela tarde.
Folhas de papel sulfite estavam coladas em todas as paredes dos blocos que mais pareciam casas antigas e reformadas para se transformarem em uma escola de tamanho mediano. Minha classe era a 5ª B. B de bonança, quem sabe. B de bagunceira. E, sim, a partir do momento em que entrasse naquela sala de aula, ninguém saberia quem foi Tita antes daquele dia.
Algumas pessoas entraram na classe. Na relação de nomes só vi meninos. Praticamente 25 para 8 ou 9 meninas, contando comigo. Desleal proporção. Na 4ª série éramos 18 alunas para 14 garotos.
Alguém me cutucou no ombro direito. Olhei para trás e deparei-me com uma menina.
— Ei, você pode me ajudar?
— Claro que posso!
— Você sabe onde fica a 5ª B?
— 5ª B? A 5ª B é aqui. — respondi-a. — 5ª B é minha sala.
— A 5ª B também é a minha sala! — exultou a garotinha.
Entramos e escolhemos dois bons lugares situados mais adiante. Ela em frente à carteira do professor e eu ao lado, na outra fileira.
Pele branca, cabelos loiros presos em um rabo de cavalo, olhos esverdeados, estatura semelhante à minha, voz rouca, tímida, mas muito, muito divertida. Tão logo iniciamos uma conversa, não paramos mais. O nome dela, Francielle Thibes.
— Sou de Tomazina.
— Tomazina? Onde fica?
— É uma cidade do interior. Fica meio longe daqui.
— Você está gostando de morar aqui?
Francielle morava com os avós e tinha um cachorro preto, o Pongo. Dele sentia saudades. Ficou em Tomazina sob os cuidados dos pais e dos irmãos de minha amiguinha. Pela foto mostrada, era um belo cão.
Não me levem a mal, mas senti inveja de Francielle por ter uma família tão bonita. Avós vivos, muitos tios e tias, primos, madrinha e padrinho, pai e mãe unidos e, claro, o cãozinho.
Ela gostava de matemática, eu de português. Ela gostava de Chapolin, eu de Chaves. Ela gostava de sorvete de morango, eu de chocolate. Ela gostava do inverno, eu do verão. Ela usava óculos e aparelho nos dentes, eu não. Ela usava Allstar vermelho, eu o preto. Ela usava fichário, eu caderno.
Um senhor vestindo blusão de lã, calça de tergal cinza-claro, calçando sapatos marrons engraxados, carregando a caixinha do apagador e uma resma de papel sulfite, adentrou a classe. Ele aparentava ter bem mais de cinquenta anos, usava óculos de grau e pintava o pouco cabelo que restou, porém, a cor ficava meio ruça.
De pé em frente à carteira, quebrou o silêncio e quase ninguém respondeu ao boa-tarde dele, que relevou o vácuo e insistiu:
— Que desânimo é esse, criançada? O ano mal começou.
O mestre abriu a caixinha do apagador, tirou um giz branco e dirigiu-se até a lousa onde escreveu o seguinte:
EMIVAL BORGESMATEMÁTICA
Matemática costumava ser o meu calcanhar de Aquiles e havia um receio natural de minha parte a respeito do Emival. Já imaginei o senhor carimbando minha reprovação e eu de joelhos no Box implorando para Meire ter compaixão comigo.
— Comigo vocês verão o quanto a matemática pode ser uma tarefa divertida.
A título de curiosidade, a única vez em que Emival escreveu no quadro foi para se apresentar. Depois, nada. Aquele senhor sabia o significado de praticidade e o levava ao pé da letra, apesar de se entrosar muito melhor com os números.
Emival era casado com uma professora daquela escola, a lendária Zoraide, no entanto, para a minha sorte ou a falta dela, nunca tive o privilégio de assistir a uma aula ministrada por ela, que estava afastada do ofício em função de um problema de saúde.
Tivemos duas aulas seguidas com o Emival, ou seja, bate-papo. Ele permaneceu um bom tempo sentado na carteira com cara de paisagem, depois saiu para dar uma voltinha e quando retornou, mexeu nas resmas de papel, apanhou um daqueles livros de palavras-cruzadas e só tirou os olhos delas, quando o sinal soou.
— Sabia que tenho um primo que estuda aqui?
— Ele está na nossa sala?
— Ele está na oitava série e se chama João Alberto, mas todo mundo o chama de João. Na hora do recreio falo com ele…
Quando soou o sinal para o intervalo, Fran e eu fomos procurar João. Ela, empolgada, assim que viu um garoto alto e de cabelos escuros conversando em uma roda com outros garotos, correu em direção a ele e lhe deu um abraço apertado pelas costas, mas quando o jovem virou para ver quem era, minha nova amiga corou de tanta vergonha.
— Desculpa, viu? Eu te confundi com o meu primo, o João.
— O João está ali do lado — o garoto apontou para a outra roda de meninos e pareceu ter levado aquele ocorrido na esportiva.
João acenou e fez um comentário bem-humorado daquela situação inusitada. Eu podia ainda estar bem distante da fase das paixonites, mas não tirava pedaço reconhecer que ele era bonito. Se eu fosse uma Piquitita, na certa faria par romântico com o primo da Fran na ficção, porém nem só de primeiras impressões vivia quem os escreve.
— E aí, como foi o primeiro dia de aula?
— Tranquilo. — respondeu Fran.
— Com quem vocês já tiveram aula?
— A gente teve aula com o Emival.
― Emival? ― João não conteve a gargalhada.
― Nunca teve aula com ele, primo? Ele é um senhor de idade, usa uns óculos grandões e tem o cabelo marrom… não o conhecem?
Os meninos riram com gosto:
― Se você comprou caderno de matemática, perdeu tempo ― advertiu o primo de Francielle.
― Por quê? A matéria é muito difícil? ― Perguntei.
― Emival nem dá dever de casa. ― Esclareceu o veterano.
— Nem prova? — Indagou Francielle.
— Posso dizer que ele é uma caixinha de surpresas. Eu, se fosse vocês, já ia estudando por conta.
João Alberto era filho dos padrinhos de Fran. Estatura mediana, usava o cabelo curto e um boné do Taz, andava de mochila preta nas costas com apenas uma alça presa ao ombro, vestia o uniforme da escola, mas o casaco dele de moletom era azul-marinho.
— Ah, eu também fiz uma amiga, primo. Ela é a Tita. — Francielle apontou para mim e João sorriu. — João, Tita. Tita, ele é o meu primo João.
Trocamos um aperto de mão e Fran tornou a falar:
— Você precisa ver como a Tita é legal, primo. Nunca mais quero ficar longe dela na vida. A gente combina em tudo, tudo, tudo mesmo.
Francielle abriu um pacote de pipoca-doce e ofereceu para os meninos que recusaram e para mim, que aceitei um punhado e lhe ofereci bolacha recheada de morango.
— Meu primo é ou não é um gato? — Francielle cochichou no meu ouvido.
João já estava no oitavo ano e era bem enturmado na escola, porém não tinha namorada alguma, não que fosse do conhecimento da prima. Os amigos dele se aproveitaram de nossa timidez e contaram tanta besteira que com o tempo descobrimos que não passavam de mentiras.
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Quarta aula. Geografia. Entrou na sala um homem de quarenta e poucos anos que vestia uma calça jeans, uma camisa polo púrpura com um bolsinho do lado direito e botinas nos pés. Pelo jeitão lembrava o Seymour Skinner, de Os Simpsons, com alguns fios grisalhos no alto da cabeça.
― Boa tarde. ― Cumprimentou o mestre.
― Boa tarde. ― Uma turma desanimada o respondeu.
― Mas o que é isso, minha gente? Mal começou o ano e já estão assim? Quero um boa-tarde, encorpado. Vocês voltaram do intervalo, não voltaram? Por favor, deem-me um boa-tarde, mas um boa-tarde com vontade. Com vontade.
― Boa tarde. ― Todos gritaram.
― Também não era para tanto, mas considerarei o esforço. Vando. A caricatura e também lenda da instituição, mais conhecido como Vando sem sobrenome porque seu número constava na lista telefônica.
Vando sem sobrenome era bastante criterioso com relação à entrega dos trabalhos e, salvo exceções, não costumava aceitar atividades entregues após o prazo estipulado. Pontualidade, por conseguinte, era a palavra-chave mais clara para definir seu rigor enquanto docente. Apesar disso, estava longe de honrar o estereótipo daquele mestre soberbo e sisudo, no entanto, chamava a atenção daqueles que atrapalhavam a aula com conversas paralelas.
Corriam boatos de que Vando sem sobrenome era solteirão, não tinha filhos e até participou de uma edição da famosa Maratona de São Silvestre.
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Alguns professores marcam muito mais que outros. Há aqueles intragáveis, a exemplo da Prof.ª Dulce, que não têm vocação para o ofício e tampouco tato para lidar com crianças. Outros, por sua vez, fazem história pela simpatia, pelo carisma, pela história de vida e por servirem de inspiração para nós, enquanto eternos alunos, porque na vida é o que somos.
Daniela Scucato encabeçou o seleto rol de docentes especiais que fizeram uma enorme diferença na existência daquela que os escreve.
Aparentando ter uns vinte e cinco anos, a jovem professora parou em frente à lousa, fitou a classe e nos cumprimentou, procurando manter a naturalidade. Primeiros dias de aula podem ser difíceis para os adultos também.
— Eu não fui muito com a cara dessa professora — Francielle cochichou comigo.
— Ela parece ser legal.
— Por conta de hoje ser o nosso primeiro dia, não quero começar o conteúdo novo.
Daniela sentou-se na ponta da carteira dos professores:
— Presumo que muitos alunos novos ainda vão entrar e quero que todos comecem juntos, então o que acham de escrever um texto? Assim vocês se apresentam e eu vou decorando os nomes de todos vocês. Quero saber se vocês apresentam alguma dificuldade porque estou aqui para ajudá-los e, portanto, preciso que vocês também me ajudem vindo esclarecer dúvidas e participando das atividades em classe para estreitarmos os vínculos e formemos uma ponte, a ponte do saber, pois eu não sei tudo de tudo, mas tudo o que souber quero dividir com vocês. Hoje, então, quero que vocês escrevam um texto. Não precisa ser muito grande, não quero que vocês se preocupem com isso, apenas quero saber como está o nível de vocês de modo geral para poder preparar meu material conforme o nível de vocês…
― Sobre o que a gente vai falar? ― Um menino sentado no fundo da classe questionou a professora.
— Sobre o que você quiser!
— Vale nota? — Outro menino perguntou. Daniela fez que não com a cabeça.
Texto com tema livre: eu adorava, pode apostar. Lápis na mão, uma folha de papel e mil ideias. Borracha, para frear minha fértil imaginação. Fim. Mas existia um problema: o que eu falaria sobre mim?
― Quem terminar, pode vir me mostrar. ― Avisou Daniela, dando a volta na mesa para sentar-se na carteira do mestre.
Terminei a produção de texto antes de todos. Dei uma rápida analisada na classe e a grande maioria ainda estava começando. Levantei-me um pouco sem jeito, parei ao lado da carteira de Daniela e ela olhou para mim.
― Já terminou?
Daniela tinha uma voz mansa, doce, acolhedora.
― Então lerei seu texto, meu anjo. Posso?
Meu anjo?
Por muito pouco não irrompi em lágrimas. Demorava meu olhar para aquela moça linda, para os seus longos cabelos castanho-escuros, para aquele rosto de feições doces, cujo nome eu jamais me esquecerei.
― Por que não traz sua cadeira e se senta? — Incentivou Daniela. ― Posso?
A professora Dulce no mínimo me enxotaria da sua carteira em voz alta, para me envergonhar diante da classe toda e fazer Cássia Reis cair na gargalhada. Os tempos estavam mudando!
― Que texto mais lindo! ― Daniela olhou dentro dos meus olhos.
― Tita?
― Isso. ― Assenti com a cabeça. ― Tita.
― Meus parabéns, Tita! Você escreve muito bem para quem tem só dez anos.
A Prof.ª Dulce aclamava qualquer cacareco apresentado pelo quarteto do mal, mas jamais me incentivou a escrever uma linha que fosse. Daniela, por sua vez, me tratava com tanta dignidade que era impossível não sentir o coração se preencher de esperança e gratidão.
Se o restante da classe matava a hora para não terminar o texto, eu, por minha vez, encorajei-me para trocar algumas palavras com aquela jovem e bela professora, alguém com quem adoraria me parecer no futuro.
Daniela e eu conversamos até o sinal soar.
― Achei essa professora muito chata. ― Reclamou a Francielle, pisando duro. ― Mandar a gente escrever texto logo no primeiro dia. Que droga!
― Gostei muito da professora Daniela. Ela é legal! ― Afirmei contente por ter uma amiga adulta.
― Legal com você, que terminou o texto primeiro. ― Retrucou Francielle.
— Nada contra o Prof. Emival, mas já gostei mais da Daniela...
Despedimo-nos no portão porque Francielle esperaria o pai de João passar de carro para buscá-los, enquanto eu seguiria até o tubo para aguardar o ônibus para chegar, de preferência, antes de tornar-me uma abóbora espatifada.
Terminei o primeiro dia de aula com duas amigas, um texto elogiado e voltei para casa horário de rush, observando o ritmo daquele bairro e também a bagunça da criançada, desejando tão logo fazer parte de tudo.
Pudera todo ano letivo iniciar-se assim.
Essas meninas são muito toscas! Julgaram a Aline de forma errada e precipitadamente. Pelo menos a Tita fez amizade com ela. É muito ruim ser novato e não ter ninguém pra conversar. Felizmente existem pessoas simpáticas como a Tita! \õ
ResponderExcluirÉ verdade. As meninas foram uma tolas em julgarem a Aline sem dar a ela uma chance de se apresentar, mas ainda bem que a Tita se colocou no lugar da coleguinha nova e se aproximou. Muitas amizades minhas na escola começaram assim, de dar uma chance aos novos alunos que chegavam.
ExcluirTita é um amor de pessoa. \o/