Simplesmente Tita — 2ª Temporada — 2º Capítulo



2º Capítulo

Montamos o pinheirinho no dia do meu aniversário, como em todos os outros anos, penduramos a guirlanda na porta da frente, enfeitamos o balcão e estava iniciada a maratona de fim de ano, aquela correria gostosa que terminava só quando era servida a ceia.  
Horácio se emocionava com os arranjos de harpa de A Harpa e a Cristandade, do Luís Bordón, e Meire se ensimesmava por razões que nem mesmo seu próprio marido tinha conhecimento. Ele narrava os Natais em família com nostalgia, ela desconversava e eu, sentada aos pés dele, gostava de ouvir as mesmas anedotas dos anos anteriores porque até aquilo incorporou-se às tradições familiares e era como se eu conhecesse todas aquelas pessoas de quem meu padrasto falava. Era como reler meu livro natalino preferido pelo menos uma vez por ano. 
Para deixar o nosso pinheirinho mais bonito, Horácio comprou uma caixinha com pisca-piscas coloridos e sugeriu à Meire que ligássemos, todavia sua resposta foi objetiva e bastante obstinada: 
— Só serve para gastar energia! — admoestou Meire. 
— É só uma vez por ano, manhê! Deixa, vai! — Implorei ansiosa para ver o nosso pinheirinho todo colorido na sala escura como era na casa dos nossos conhecidos. 
— E o salário do Horácio só cai uma vez por mês! — rebateu a troglodita. 
— Quem sabe no ano que vem, Tita… Sua mãe tem razão: pisca-pisca gasta muita energia… — Encerrou Horácio, que ao longo dos anos aprendeu uma lição muito valiosa: discutir com quem já tinha uma opinião pronta era chamariz para brigas desnecessárias, não valia a pena, ainda mais por pisca-piscas. 

♏♏♏

Quando saíamos à noite e passávamos de carro por todas aquelas ruas decoradas e iluminadas, meus olhos se enchiam de encanto. Não fazia mais sentido escrever cartas para o bom velhinho porque aos nove anos, pouco antes da véspera de Natal, saí com Meire e Horácio para fazer as compras para a ceia e precisei usar o banheiro do mercado. Na volta, brincando de amarelinha no piso de cimento polido, recuei quando vi minha mãe e meu padrasto guardando pacotes em uma sacola no caixa onde uma moça de coque nos cabelos empacotava produtos e mais produtos.
Meu coração quase parou de tanta tristeza. Passei todos aqueles anos escrevendo cartinhas para a minha própria mãe ler e não me presentear com nada daquilo que eu pedia. Bem sabem vocês que em matéria de desilusão eu não era nenhuma iniciante, já colecionava decepções e aquela era apenas mais uma, nem a primeira e tampouco a última. 
Que sentido tinham todas aquelas músicas que exaltavam aquele velhinho generoso se ele não passava de um impostor? Qual era a ideia de iludir as crianças daquela maneira para depois esfregar na cara delas que suas crenças eram o motivo de escárnio dos adultos? 
Deixei para lá a ideia de escrever para o Coelho da Páscoa também, mas guardaria no peito a inocência inabalável daqueles tempos. Poderia pensar que tal como os duendes e as fadas, eles existiam para quem acreditava neles. 
Em todo o caso, ainda compensava ser gente grande, pelo menos foi-me concedida a honra de ficar acordada até mais de meia-noite, porque a magia do Natal residia em mim, lendas à parte. E ela reluzia tanto quanto àquelas ruas iluminadas pelas quais passávamos de carro quando íamos visitar vovó. 

 ♏♏♏ 

Convivendo com uma pessoa extremamente metódica e inflexível, não era prudente esperar surpresas natalinas, pois Meire não gostava de cear tarde e tampouco de participar de comemorações em grupo, logo, nunca éramos convidados para as festas na casa dos parentes de Horácio e nunca comparecíamos ao evento da empresa onde o meu padrasto trabalhava havia décadas.  
Éramos apenas nós três em volta da mesa arrumada, sem muitos protocolos. Meire sempre argumentava que cozinhar não era o seu passatempo, que preferia capinar o quintal, trocar o chuveiro ou mesmo mexer com o carro, mas quando cismava em preparar um banquete, ninguém a impedia, guardava com esmero o livro de receitas na estante da sala e inspirava-se nele. 
Horácio comprava todos os ingredientes e eu me encarregava de ser um par de braços à disposição para lavar, enxugar a louça e guardar tudo no seu respectivo lugar. Naquele ano, Meire colocou uma ave para assar no forno, cozinhou as batatas para preparar a maionese, cuidou das lentilhas e do arroz, me pediu ajuda para molhar biscoitos numa travessa com leite e forrá-los para jogar por cima uma camada de brigadeiro e outra de beijinho, a nossa sobremesa. 
— Ainda está meio cedo, Meire… — protestou Horácio, às oito e quinze. 
— Eu não gosto de comer tão tarde… — Reclamou ela, tirando a travessa de sobremesa de dentro da geladeira. 
— Podemos esperar pelo menos mais uns quinze minutos? — propôs ele.
Meire concordou e foi tomar banho. Depois da ceia, esfregando pratos e areando panelas, bem secretamente eu esperava que alguém porventura se lembrasse do meu nome. Já eram quase dez horas da noite e ninguém nem sequer ligou para nós por engano. 
Meire “sumia” quando chegava a hora de Papai Noel entregar nossos presentes e Horácio parecia mais animado do que eu, por isso não chiávamos quando lavávamos, enxugávamos e guardávamos a louça. Era raro ver mamãe de vestido porque para ela não tinha o menor sentido aprumar-se toda para cear em casa e receber o ano em frente à televisão, sem também esconder de ninguém que se desagradava sobremaneira com a conotação consumista daquela data comemorativa que distorcia o sentido da reflexão. Nada a enojava mais do que a compaixão sazonal e a hipocrisia daqueles que faziam caridade aos menos afortunados diante das câmeras para ganhar pontos com Deus. 
— Por mim, eu desligava esse telefone. — Murmurou Meire pouco depois de distribuir meus presentes. 
— E se sua mãe telefonar? — Lembrou Horácio, sentado na sua poltrona marrom de couro, uma aquisição que fez com parte do seu décimo-terceiro salário daquele ano. 
— Minha mãe está de plantão, não se lembra? Pode desabar o mundo que daquele hospital ela não sai. — Resmungou a troglodita em represália, um pouco irritada com os especiais musicais na televisão, procurando no controle remoto qualquer atração neutra que não a aborrecesse. 
— Infelizmente as pessoas não escolhem se machucar ou adoecer logo na noite de Natal. — refletiu o meu padrasto. 
Às dez e quinze da noite ligou a mãe do Horácio, às dez e meia uma tia-avó dele, que era uma espécie de madrinha e morava em São Paulo, às dez e quarenta e cinco foi um colega de trabalho dele. 
Meire e eu estávamos abandonadas, ignoradas, ninguém sequer se lembrava de nós. Eu me punha a pensar se àquelas alturas Aline já havia encontrado outra melhor amiga e não queria mais saber de mim, se eu havia feito algo de errado para alguma das Marianas se aborrecerem comigo, se a Prof.ª Daniela mentiu quando disse que eu era especial para ela. Pouco depois que Meire desligou o televisor e mandou-me para a cama, o telefone tocou. 
Alguns minutos depois, um grito vindo lá da sala.
— Se abrir essa porta, seja lá para quem for, está ferrada!
Continuei sem entender o que Meire queria dizer. Horácio teve de ser a testa de ferro.
— Tita, por que não senta aqui do meu lado um instante?
— Aconteceu alguma coisa?
— Na verdade, sim.
— E o que aconteceu?
— Maria Clara vai ter que passar um tempinho aqui conosco. 
 — É uma notícia boa, não é? 
— É e não é. 
— A Vó Olívia está doente?
O pesar cravado com afinco no olhar de Horácio já era suficientemente esclarecedor.
— Não precisa chorar, Tita. Vó Olívia não morreu, mas precisará ficar no hospital por algum tempo.
— E a Clarinha?
— Maria Clara vai passar uns tempos conosco até que Vó Olívia se recupere.
— O que ela teve? Por que ela passou mal?
— Não te interessa, garota. E já está avisada: se abrir essa porta a quem quer que seja, apanha tanto quanto no dia em que pousou de mentirosa na escola.
— Meire, hoje é véspera de Natal. Tenha mais paciência com a Tita.
Meire não voltou até o dia seguinte.

2 comentários:

  1. Ah! Finalmente eu consegui entrar na minha conta.E mal posso esperar pelo próximo capítulo!
    Meus olhinhos estão brilhando nesse momento!
    Tita é tão mais feliz com o Felix,queria que ela morasse com ele,mesmo com a Helena no caminho porque a Tita ainda não vai muito com a cara dela,mas ela mesma disse,é melhor que a Meire.

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    Respostas
    1. A Tita precisa dar uma chance para que a Helena mostre quem é.
      Agora que ela está crescendo e vivendo as coisas por si mesma, sem se contaminar com os achismos da Meire, pode ser um bom momento para que nossa protagonista perceba que a madrasta não é aquela bruxa perversa dos contos de fadas.
      Muitíssimo feliz por você ter conseguido entrar na sua conta e mais ainda pelo seu comentário!
      O capítulo de amanhã está imperdível!!!

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