5º Capítulo
Ao fim do dia, quando estávamos esparramadas no sofá vendo Mundo da Lua, o telefone tocou. Era para Aline.
— VOCÊ CONSEGUIU O EMPREGO, MAMÃE? — Aline começou a chorar na linha. — Então, eu não vou precisar sair da escola?
Felix era lindo como os pais das protagonistas de novelas infantis. Lindo mesmo. Sua voz grossa e, ao mesmo tempo, acalentadora me fazia querer voltar a sentar em seu colo.
Aos cinco anos, eu me casaria com ele, se possível fosse. Não era magro nem gordo. Estava sempre cheirando a loção masculina e nem mesmo tinha aquele bafo nojento que alguns adultos exalavam ao falar de perto comigo. Nem mesmo palavrões proferia. Até Aline confessou que adoraria ter um pai assim. Eu que o diga.
Horácio, meu padrasto, era magricelo, alto, com feições inexpressivas, ofuscadas pela timidez e repressão de Meire, sempre o tratando como nada. Era como um cachorrinho, só que mais sensível. Só pecava em ser conivente as chicotadas de Meire.
Vendo meu pai tomando café na cozinha, corri a seu encontro o fazendo deixar a xícara na mesa e corresponder ao meu abraço.
— Te amo, pai!
— Você sabe que eu também te amo, minha princesa.
— Ei, ei… — Helena, brincalhona, também entrou no embalo. — Eu também quero abraço.
Voltei a admirar Felix como se ainda fosse aquela menininha de 6 anos. Mesmo praticamente com um pé na adolescência, papai voltou a ser meu herói, meu melhor amigo e 99 prometia ser melhor que 98. Estava escrito nas estrelas.
***
Depois que Aline passou a ser minha companhia, ambas tínhamos permissão para passear depois das 16h. Quando saímos de casa, encontramos Adolfo.
— Não me disse que tinha irmãs. — Adolfo estava chupando um pirulito igual àqueles que as crianças da série Chaves apareciam em cena.
— Ela não é minha irmã.
Apresentei Adolfo a Aline.
— Adolfo, ela é Aline, minha melhor amiga. Aline, ele é o Adolfo.
— Prazer em conhecer. — ambos se limitaram a um singelo aperto de mão.
— Adolfo? — Aline questionou.
— Esse aqui é Adolfo, um chato aí que conheci. — achincalhei meu vizinho de praia.
— Chata é você. — A almôndega não deixava barato.
— Ah sim. O que chatos dizem, eu não dou a mínima.
— Tampinha.
— DO QUE ME CHAMOU?
— Tampinha. — Ele mostrava a língua colorida, o que me enfurecia.
— Almôndega.
— Isso é jogo sujo, tampinha.
— Vai contar para a mamãe, almôndega?
***
De dupla, nos tornamos um trio. Um trio inseparável. Íamos à praia todas as manhãs, voltávamos para almoçar e depois íamos passear novamente, o que nos ajudou a conhecer outras crianças que estavam de férias, com quem brincamos, ouvimos música e trocamos confidências.
Ao fim do verão, nossa amizade acabaria, mas seria abençoada pelos raios de sol que me faziam agradecer a Deus todas as manhãs por estar viva, apesar de eu não ser a católica mais perfeita do mundo.
***
Helena gostava de preparar grandiosos almoços e era incomensuravelmente apaixonada por batata-frita. Era seu prato preferido. Ao ver Aline e eu nos alimentando, comentava sermos “magrinhas demais”. Nós ríamos.
— Como vocês podem ver, odeio dietas e exercícios. Adoro doces e batata-frita, meu Deus! Que culpa eu tenho?
Ríamos mais ainda comendo sorvete com cobertura de chocolate e amendoim salpicado. Verdadeiras viciadas em refrigerante com pipoca. Éramos felizes e muito provavelmente não sabíamos disso.
***
Aline passou seu aniversário de 12 anos conosco e meu pai, para incentivá-la a estudar, custeou seu material escolar. Fomos a uma papelaria bem famosa no centro da cidade e eu acabei comprando o que precisava também.
Após isso, comemoramos com Aline em uma sorveteria com algumas fotos as quais apareci com um chapeuzinho rosa do Garfield, aliás, meus cadernos naquele ano foram todos da coleção dele. Um mais lindo que o outro. Be alone no more — Another Level lembra muito as férias de verão. Quanta saudade!
***
Vez ou outra minha mãe telefonava. Em momento algum dizia ter saudades ou qualquer sentimento. A voz era sempre a mesma. Ríspida e impassível.
— Está se comportando?
— Estou. — eu bufava.
— Está mesmo? Quando chegar, Felix e Helena vão me contar tudo. Se eu souber de algum erro, já sabe!
***
Nota da autora: Se possível for, leia ouvindo Resposta - Skank.
Já era fevereiro. Só de pensar que as férias iriam acabar, chorávamos. Adolfo parecia uma pedra no meu sapato porque não parava de me provocar, sobretudo quando estávamos em grupo.
Adolfo adorava esperar Sérgio sair para ouvir música alta no carro. Fechava os olhos, viajava. Resposta — Skank era o vício de Adolfo, depois do Too Much. Ele colocava no repeat. Outra e outra vez. Chamá-lo nessas horas era basicamente uma perda de tempo. Aline e eu nos bancos de trás éramos meras passageiras.
— Hoje é meu último dia aqui. — Adolfo deixou escapar.
— Você está mesmo indo embora, Adolfo? — Aline mostrou-se chateada.
— Sim…
— E vai tarde. — provoquei-o.
— Você não deixa de ser chata nunca?
— Digo isso para você.
— Vocês dois não deixam de brigar um só dia? — Aline interveio.
— Ele começa. — Me encolhi no banco e cruzei os braços fazendo biquinho.
— E eu termino. — Aline finalizou. Simples assim!
Passado mais algum tempinho, Adolfo deixou escapar.
— Prometem que vão se lembrar de mim quando ouvirem essa música?
Nostálgico demais. Não parecia aquele sem noção que me perturbava.
— Voltar para aquele colégio vai ser foda, cara. Mas é o jeito. Quem mandou ser burro e não passar no Militar? — Ele deu de ombros. — O inferno só ia trocar de sede mesmo. Os dois são uma droga.
— Acho que quem é uma droga é você. Você que é um chato. — retruquei.
Adolfo virou-se para o banco de trás:
— Ainda bem que a gente não vai mais se ver. Você é uma chata.
— Olha quem fala?
— Estou indo embora, estou me despedindo e você nem aí. Ainda bem que a gente não vai mais se ver.
— Ainda bem, mesmo.
Bufei, abri a porta do carro, a bati com força e fui para dentro de casa. Aline me seguiu.
— Tita, você não precisava ter feito aquilo.
— Vai ficar do lado dele agora?
— Vou. — Aline parou com as mãos em volta da cintura. — Vou!
— Aline, por favor.
— Sabe o que estou começando a achar? Que você gosta dele!
— EU COM AQUELA ALMÔNDEGA CHATA? NUNCA!
— Quem muito briga é porque se gosta.
— Não no nosso caso.
— Principalmente no caso de vocês…
— Adolfo é um chato, um mala, um inconveniente…
— Não estou falando que você quer namorar, se casar com ele, mas dá para pelo menos entender que você gosta dele?
— Nunca. Isso nunca.
— Por que você é tão teimosa, Tita? Por quê?
— Eu não sou teimosa.
— Nesse exato momento você está sendo.
***
Era difícil. No auge dos meus 11 anos, a última coisa em que eu pensava era em casar. Muito menos com Adolfo. Com ele não. Nem ele, nem nenhum garoto.
Enquanto Aline logo deitou e dormiu, eu, por minha vez, nem sequer cochilei. Estava incomodada e não era com os pernilongos nem com o calor. Já havia me acostumado a dormir sem me tapar. Virava de um lado para outro e nenhuma posição me favorecia.
Caminhei pelo corredor, bebi água, vi o cachorro guardião sentado em frente ao portão, o tio da casa ao lado assistindo filmes, a rua quase deserta. Sentei-me no primeiro degrau da escadinha que separava o chalé da calçada e procurei não pensar em mais nada, o que era fora de cogitação, sem mais. A luz do quarto de Adolfo estava acesa. Bufei de raiva e voltei para dentro.
Só o fato de Adolfo existir me deixava irritada, mas, ao mesmo tempo, eu também não o queria mal. E sim, me irritava com todas aquelas insinuações ridículas, infundadas. Aline e seus falhos conselhos. Eu nunca pensaria como ela, nunca veria graça em trocar saliva com moleques aloprados. Nunca, ainda que se tratasse de uma expressão impactante.
Quando enfim adormeci, a música voltou a chamar minha atenção. Ouvi Helena e Sônia proseando. Calcei meus chinelos e fui até a cozinha.
— Venha se despedir das crianças, Tita. — Helena me chamou.
Adolfo estava mesmo indo embora.
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