4º Capítulo
Sempre que Sérgio e Sônia saíam, o som da família Hass ficava altíssimo. Quase sempre o rock predominava. A meia-irmã de Adolfo, Miriam, também gostava de Spice Girls como eu, mas mais ainda de rock.
É verdade que eu gostava daquelas músicas todas porque João e os amigos dele viviam comentando a respeito das bandas e, se no começo aqueles nomes todos me soavam um mistério, depois já eram uma parte de mim. Queria poder contrariar Adolfo. Era um prazer discutir com ele, assim de propósito.
— Ninguém te mandou vir, tampinha. Chispa!
— 2 contra 1. Agora é nossa vez de escolher a música — protestei, sem sucesso.
Adolfo dançava parecendo uma lombriga que tomou choque. Eram os passos mais ridículos que meus olhos já haviam visto. Aposto que ele se sentia o Nick Carter. Fechava os olhos e ignorava a presença da irmã, a minha, de quem fosse.
***
Irritada por ser chamada de tampinha, disse aos garotos do condomínio que a almôndega dançava É o Tchan quando ficava sozinha. Era mentira. Na conta, o rock sempre vencia. E nada mais justo afirmar o quanto a mentira pode ter perna curta.
Estava eu com duas marias-chiquinhas bem penteadas quando vem Adolfo e puxa uma delas com força.
— Além de tampinha, é mentirosa.
— Me larga, almôndega. As joelhadas desferidas não o acertaram. — Me larga, seu besta. Me larga!
— Agora estamos quites, manhosa.
***
Para Felix e Helena, a viagem estava sendo uma lua-de-mel. Papai estava de férias até o Carnaval, então sugeriu que ficássemos no litoral até minhas aulas retornarem. Meire hesitou, mas concordou, visto que eram 4 contra 1. Eu só voltaria para Curitiba no último dia de férias, no entanto, se aquela almôndega continuasse me importunando, meu verão iria por água abaixo.
O que poderia ser pior que aguentar Meire e suas paranoias? Som alto implicava dizer estarem conspirando contra ela. Nenhuma música era boa. Novela representava putaria, mulher que assistia e jogava futebol era “outra coiaa”. Aqui entre nós, posso estufar o peito para dizer que gostava de ver partidas de futebol com Horácio aos domingos, a perder meu tempo vendo sempre o mesmo.
Antes, eu amava me prender por meses a fio esperando pelo final feliz dos mocinhos. Depois, apesar de ver uma trama ou outra, aquilo perdeu a graça. Servia para pessoas como a Clarinha, que gostavam de se anestesiar da realidade e se programarem para preencher o tempo vazio com qualquer coisa, ainda que às vezes perdessem a conexão com o sensato a ponto de invejarem personagens, aparências, compartilharem modismos. Alguns temas ali tratados distorciam a opinião da massa.
Será que eu era brasileira de verdade?
Naquele horário em que todas as menininhas estavam se babando pelos galãs bombados, eu estava vendo desenho animado ou ouvindo música, repassando o que estudava. Mas era época de férias. Esperamos o verão durante o ano todo e, quando ele chega, nada mais digno do que fazê-lo valer a pena.
Eu nunca ia ao litoral. Nunca saía daquela rotina: casa-escola-casa. Quiçá os dias em que visitava Clarinha e ainda assim ela me traía, passando mais tempo invejando as atrizes adolescentes e achando que o que acontecia naquela escola era verdade. Sobrava respirar ar puro.
— Ai, Tita, quando você assiste fica viciada.
— Não entendo o que você tanto vê aí.
— Você é que perde não vendo.
— Tenho o direito de não querer ver, tenho?
Eu era anormal?
Estava chateada por não ter ninguém para conversar. Adolfo me irritava. Era um chato. Quando dava para me provocar, me tirava do sério. Provavelmente Miriam dominara a televisão e sobrava-lhe matar o tempo. Também não devia ver um pingo de graça nos diálogos forçados e na tal realidade paralela.
— E aí, tampinha? Morreu alguém?
— Por quê?
— Está aí com essa cara de desânimo.
Eu não iria falar coisas profundas àquele garoto, porque eu não era tão profunda assim. Pensava diferente e não queria. Para ter amigas, seria bastante oportuno sentar-me em frente ao aparelho televisor e escolher um dos gatinhos para venerar, comprar revistinhas e ter inveja da personagem que o namorava. No entanto, não era a minha praia. Nem a de Adolfo, tão do contra.
— Se toca, Almôndega. Vá procurar tua turma.
— Gosto de te provocar, tampinha.
— Se me chamar de Tampinha de novo, vou te bater.
— Seus tapas nem doem. — debochou.
— Dessa vez vão doer muito. — retruquei em voz alta.
Puxou meu cabelo e o desarrumou mais ainda.
— IDIOTA! — protestei histericamente.
— A Tampinha fica tão engraçada quando está irritada — gracejou.
— Almôndega.
Puxou meu cabelo.
— Não me chame assim.
— Almôndega.
— ‘Cê’ está avacalhando, tampinha.
Pisei no pé direito dele.
— Agora estamos quites.
— Fala dessa escola aí, mas não deve ter nenhum amigo.
— Não sou você. — Tentei empurrá-lo, mas não aconteceu nada. — Sabe de uma coisa? Vou pra dentro. É melhor que te aturar…
Entrei. Aos prantos. Helena estava vigiando o forno. O cheirinho de bolo de chocolate estava reacendendo pela casa. Minha madrasta me conquistou pelo estômago. Vendo-me sentada no sofá com os braços cruzados e fazendo biquinho, foi até mim.
— Que houve, Tita?
— Aquela almôndega chata…
Helena sentou-se ao meu lado.
— Almôndega? Quem?
— Aquele vizinho chato… Vive me chamando de tampinha…
— Tampinha? Só porque é pequenininha? Esses meninos são ligeiros para apelidar.
— Até você, Helena?
— Se quiser convidar suas amiguinhas para passarem as férias aqui, é só ligar. Está tão gostoso aqui que nem dá vontade de voltar.
— Posso mesmo?
Telefonei realmente, mas Mariana Franco estava em Florianópolis com Mariana Oliveira. Só havia uma pessoa que estava em Curitiba e eu não pensei em ninguém melhor. D. Nice também não.
— Claro que a Aline pode ir sim. Pobrezinha, está tão triste em casa…
***
Felix voltou para Curitiba porque não queria que Nice gastasse um centavo com passagens e eu fui junto. Aline chorou de alegria ao me ver.
— Estou me sentindo um nada nessas férias. Todo mundo me abandonou.
— Por que não ligou lá em casa?
— Não posso falar… Tenho vergonha.
— Deixe disso, criança. Pode ligar sempre que quiser. — Felix avisou.
— É que meu telefone estava cortado, tio. Arrumar emprego está tão difícil que eu to pensando em largar o colégio para ajudar minha mãe.
— Não pense nisso, Aline. Estudando é que se consegue um bom emprego.
***
Papai pagou um lanche para nós. Entre hambúrgueres, batata-frita, refrigerantes e sorvetes, colocávamos os papos em dia.
— A Prof.ª Daniela e o Vando casaram.
— Já?
— Já… Eu tentei te ligar para avisar. A Prof.ª Daniela estava louca atrás de você para você ser a dama dela, mas a Meire dizia que você não estava em casa.
— Não acredito. — Me encolhi na cadeira com pesar.
***
Felix mostrou-se muito sensibilizado com a história da D. Nice, tanto que assim que chegou à casa novamente, passou algum tempo no telefone.
***
Aline estava gostando do Mauro, um vizinho novo que se mudou para o bairro dela, mas ele tinha namorada e ela estava de fossa, louvando a Deus pela viagem para poder esquecer um pouco dos problemas.
Aline, aos 11, já se apaixonava com tanta facilidade e eu nem sequer pensava nisso. Se conseguisse escapar do inferno em fevereiro, já seria a pré-adolescente mais feliz do planeta, sem exageros.
— Meu pai era igualzinho ao seu pai. — Suspirou. — Que Deus o tenha.
— Sinto muito.
— Ele está melhor lá no céu. Sofreu muito. O câncer é muito cruel. Num dia, meu pai era meu herói, meu tudo. No outro, ele estava condenado numa cama, sem forças nem para comer.
Aline ainda se emocionava ao lembrar-se dos dois dolorosos meses em que o câncer castigou Rubens e precocemente o levou.
— Sinto tanta saudade dele… Mas não presta questionar Deus. A gente não pode contra os escritos Dele. Não nego. Queria que meu pai estivesse aqui. Não sei se as coisas seriam muito diferentes. Não sei o que Deus quer para nossa família, mas acredito que tudo é para melhorar. Claro que também não posso ser ruim: encontrei você. — Ela me abraçou apertado e chorou. — Você está sendo uma amiga muito legal para mim. Não sei como vou te agradecer por tudo.
— Não precisa.
— Tenho certeza de que seu pai e meu pai seriam amigos.
— Seriam, com certeza.
Eu também mentia às vezes. Por questão de sobrevivência. Aline devia entender, pois passei a compreendê-la também. Era estranho.
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