Simplesmente Tita — 2ª Temporada — 3º Capítulo



3º Capítulo

Encabulado. De olhos fechados. O som alto tomava conta da propriedade. Acenei e dei uma batidinha no vidro.
— Isso não é música para menino! — Gritei como se fosse a autora da canção.
O moleque abriu o vidro, mostrou a língua e continuou ouvindo como se não tivesse me visto.
— Menininha.
Ele gamou em Too Much, por ouvir umas 10 vezes seguidas até alguém reclamar que iria gastar a bateria.
— Por que não vai à praia, hein? — ordenou o homem, de dentro de casa. — Não aguento mais essa maldita música.
Ri alto. Ele era um babaca, por isso mesmo os outros garotos do condomínio o zoavam. Ouvindo musiquinha para menina, se bem que disse aquilo só para provocar e isso ele deve ter sacado de primeira.
— De que está rindo?
— Você é um idiota. — Caçoei, e não seria de nada mau tirar um sarro daquele bobalhão. — Escutando música para menininha.
— Menininha é você que escuta isso. — Ele revidou.
— Ah sim…
— Está me seguindo, é?
— A praia é de todos, não só sua.
— Seria bom levar boia para não se afogar, tampinha.
— QUÊ?
— Não enche, tampinha.
Dei uma gravata nele no meio da rua.
— ME CHAMOU DO QUÊ, SUA ALMÔNDEGA?
— TAMPINHA.
Derrubei o gordinho no chão, que para me zoar, abaixou minha saia e riu.
— Não vi nada de engraçado.
— Tampinha implicante.
— Ah, mas agora você vai ver uma coisa.
Pisei no pé dele.
— Nem doeu, tampinha.
Pisei com mais força, aglutinada àquela tradicional rixa que garotos e garotas têm até determinado momento de suas vidas.
— Isso não dói nada, tampinha. Você é muito fracote.
Chegamos à praia apostando corrida e brigando. Três horas depois, cansada e com insolação, voltei para casa e virei à noite febril, aos cuidados de Felix e Helena.

***

O garoto sem noção também deve ter passado mal porque não foi à praia na manhã seguinte, muito menos à tarde. Ficou ouvindo rock no quarto. Vira e mexe ouvia os gritos do pai dele, versão masculina de Meire das Neves.
— Desliga essa merda, seu imprestável.
— Não desligo! — um forte e corajoso protesto.
— Seu animal, isso aí que você ouve não tem nexo.
Eu mal podia crer que outra Meire existia em um lar qualquer desse mundo. A mesma truculência, a autoridade tilintando nas ameaças, uma deslocada censura. Isso justificava os quilinhos a mais que Adolfo carregava com o fardo de ser uma criança também indesejada. Estava nítido que não era bem-vindo ali, mas não tinha outra escolha, não tinha um Felix para ampará-lo. 
Por que eu estava pensando tanto no que acontecia na casa ao lado? Tecnicamente não era da minha conta se o homem não gostava de Man in the box do Alice in Chains.
— Eu já avisei, por bem. Não me faça arrombar essa porta e deixar seu lombo gordo em carne viva.
— Se quiser, venha!
O som só abaixava quando finalmente o troglodita fazia menção de arrombar a porta.
— Isso não é música, seu infeliz.
— Melhor que ser um cachaceiro.
— Com você não tem conversa mesmo. Quantas vezes eu já disse que não gosto desse tipo de música?
— Quem tem de gostar sou eu.
— Está explicado o mau gosto.
— Ao menos não sou eu o cachaceiro.
— Pelo menos não carrego meia tonelada no corpo, imprestável comilão.
Uma voz de menina quase esganiçando pedia trégua. O homem soltava o ar pela boca e se retirava do quarto, abaixando a guarda. Não por querer.
— Adolfo, tenta se controlar. — implorava a garotinha, provavelmente irmã ou prima da almôndega.
— Não vê como ele fala comigo?
— Sim, eu sei, mas não liga não porque é o jeito dele.
Desligou o som.
— Vem, Adolfo. Vem comigo e esquece isso.
Assistia Chaves. O bêbado implicava.
— Não sei que graça você vê nessa velharia chata.
— A mesma que você vê na cachaça. — retrucou o moleque, sem medo.
Rir era o que lhe sobrava. Merecidamente. O homem era vencido pelo cansaço.
Ao final da tarde, quando saí para comprar sorvete, o encontrei no balcão e o vizinho, acenando, me cumprimentou.
— E aí, vizinha?
— Ah, beleza… — sacudi os ombros.
— Também gosta de Chaves
Além de tudo, amava sorvete de chocolate.
— Está brincando? Seu Madruga é lenda.
— Gosto de todos, mas Kiko e Seu Madruga são únicos. — concordando com a cabeça. — Enfim, uma menina legal.
— Ah, valeu.
— Ontem eu nem me apresentei. Meu nome é Adolfo. — estendeu a mão.
— Sou Tita. — retribuí o gesto. — Desculpa por ontem…
— Até que a tampinha sabe brigar direitinho. — Não perdia a oportunidade de me achincalhar.
— Me chama de tampinha que roubo seu sorvete, almôndega.
— Almôndega não, tampinha.
— Almôndega, sim.
— Engraçadinha…
Passeamos pelas redondezas e ele me contou que ficaria até o final do mês porque sua mãe, da polícia, estava trabalhando no litoral. Filho único, não se entendia muito bem com o novo marido de Sônia, ao menos compreensiva.
— Curitibano também? — prolonguei um pouco a conversa.
— Na verdade, nasci em Caxias do Sul, mas moro lá em Curitiba há muito tempo, então me considero mais curitibano.
— Legal… — caminhava, chutando de leve umas pedrinhas.
— Nunca saiu da cidade?
— Tirando para ir à praia? Não!
Adolfo me contou que seu colégio era um porre. Contei, por minha vez, que o meu era um paraíso e eu estava triste por estar de férias. Ele até riu.
— Também não é para tanto.
— Diz isso porque não vive lá.
— Então por que vai sair?
— Minha mãe ordenou e a última palavra é sempre dela. Sabe como são as mães, né?
— Meu padrasto também é autoritário. Odeio isso. — Ele bufou. — Então, bem lá, no fundo, você me entende.
— É quase isso.
— Se a qualquer hora dessas você quiser ouvir música comigo e com a minha irmã, é só vir.
Definitivamente, eu não iria.

***

Quatro dias na praia. Apesar de estar me divertindo tão intensamente, ainda sentia saudades da escola, o que era estranho. Nenhuma criança de 11 anos trocaria a praia pela sala de aula. Até Helena me sugerir.
— Os vizinhos da casa à frente têm crianças da sua idade, Tita. Por que não vai conhecê-los?
— Aquele menino é um chato.
— Você o conhece?
— Infelizmente. — cruzei os braços, sentada no sofá.
— Não me diga que é aquele que te chama de tampinha?
— Até você, Helena?
— Tampinha… — riu. — Esses moleques não perdem tempo…
Helena não parecia aquele monstro que imaginei aos 8 anos. Pelo contrário. Julguei mal àquela mulher porque me deixei iludir pelos achismos arraigados de preconceito com que Meire costumava rotular seus semelhantes. 
Minha madrasta era tão dócil, de fala mansa, um sorriso acalentador, desprovido de despeito, uma pessoa que levava literalmente o ditado de que a felicidade se encontra nas coisinhas simples. Não erguia a voz nunca e tinha harmonia com meu pai, algo que mamãe e Horácio não tinham. Sentada na banqueta de onde fazíamos nossas refeições, conversava com Helena como fazia com a Prof.ª Daniela.
— Meninos nessa idade costumam pegar no pé, mas você tem duas alternativas: ou você o deixa falar e finge que não ouviu ou perde o verão e eu sei que você não perderá o verão por pouca coisa. Além disso, se ele provocar, revida com um bom pisão no pé.
— Sabe que não é uma má ideia? — Ri, do jeito brincalhão de Helena, tão diferente de Meire.
— O que a gente não pode fazer é deixar de viver por ninguém. Mas sabe, criança, não julgue sem conhecer. Muitas vezes essas provocações todas são um jeito de tentar conversar com você. Não vou te forçar a ir porque você já é uma mocinha e pode decidir por conta própria o que julgar adequado, mas…
A última palavra que entendi foi sobre bolo. Ah sim… Helena tinha mãos mágicas para cozinhar. Conquistou a mim e a Felix pelo estômago. Fazia um bolo de chocolate que cheirava bem lá do outro lado da rua.

“E quanto ao encontro com a almôndega, foi o mais desastroso possível. Ele é muito chato. Existe alguém mais chato no mundo? Acho que não!”

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