João Alberto, como muitos meninos daquela idade, não sabia como expressar seus sentimentos, mas a gratidão pelo carinho com que acolhi a Francielle durante a permanência dela em Curitiba externou-se através da amizade oferecida, independentemente do vínculo. Não precisávamos passar os recreios grudados para nos gostarmos. Quando conversávamos, o tempo dava a impressão de não passar, apesar de ele me atentar com esse negócio de me chamar de tampinha.
Dizem que notícia ruim corre depressa, mas as boas também. Minha menor nota no primeiro bimestre foi 82 em ciências, ganhei uma medalhinha de honra ao mérito e o título de melhor aluna da quinta série, então as meninas da oitava me admiravam, sendo que eu as achava descoladas e queria ser como elas quando estivesse me formando no ginásio.
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Mariana Franco era a líder nata da turminha. Capricorniana do dia quinze de janeiro, filha caçula, cheia dos mimos e das reinações. Cabeleira farta, olhos escuros e grandes, puxadinhos, pele bronzeada, corpo em desenvolvimento, um palmo a mais de altura que a tampinha. Esnobe de vez em sempre, estabanada, exagerada, completamente sem noção. Passeava no mundo da lua e deixava a cabeça por lá.
Mariana Oliveira era filha da dona de uma papelaria, não conhecia o pai biológico e não se entendia bem com o padrasto, viviam discutindo. Nascida no dia catorze de fevereiro, personalidade contida e discreta, também por grande influência da religião. Cabelos castanho-escuros presos num coque alto, unhas curtinhas e pintadas com esmalte cor de renda. Por não enxergar nada bem de perto, usava óculos apesar de não gostar deles. Geralmente era a única que conseguia acompanhar a xará sem se perder.
Juliana era magra e não por falta de comida porque aquela lá era boa de garfo à beça, apesar de mastigar bem devagar. Taurina do dia dez de maio. Por mais que tivesse lindos cabelos castanhos e encaracolados, escondia-os presos com o bico de pato. Falava mal da Mariana Franco sempre que tinha uma oportunidade. Pelas costas, claro. Queixava-se da carolice da Oliveira, das ceninhas da Rafaela, me tirava para esquisita, porém sempre que era inquirida, desconversava.
Quando operou as orelhas de abano, Juliana ficou longe da escola por algumas semanas. Conhecida por fazer promessas exageradas, furava na última hora. Numa ocasião fui convidada para pousar na casa dela para fazermos um trabalho de história em dupla, mamãe me levou ao endereço, batemos palmas no portão por vários minutos para nada, não tinha ninguém. Na segunda-feira, nem um “sinto muito”. Fiz toda a pesquisa sozinha e o alecrim dourado veio cheia das desculpas, pois sabia que eu não teria coragem de tirar satisfações.
Noutro dia ela me ofereceu um filhote de hamster com gaiola, serragem e um pouquinho de comida. Meu padrasto havia triunfado na iniciativa de convencer a grande troglodita de que um roedor menor do que uma concha de feijão não representava nenhum perigo para nós.
O dia marcado para entregar o animalzinho foi um sábado. Passei horas e horas aguardando um telefonema, uma buzina de carro, mas tudo o que conquistei foram olheiras de tanto chorar.
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Mariana Oliveira nunca convidava ninguém para dormir em sua casa porque o padrasto era muito conservador e as brigas lá eram frequentes. Quando queria se desculpar conosco, trazia presentinhos da papelaria, a exemplos de canetas em gel, caderninhos brochura e cartelas de adesivos.
Juliana era a típica bajuladora que exagerava nas firulas, todavia quando se ressentia com a colega fazia disparates no mínimo deselegantes para externar a ingratidão.
Mariana Franco gostava muito de convidar as amigas mais chegadas para pernoitarem em sua residência e tanto a bajuladora quanto a xará me garantiam que o tratamento era maravilhoso.
— Ei, Tita, quando é que você vai pousar lá em casa? — Quis saber a Mariana, que quando caminhava enganchada com as amigas gostava de se colocar ao centro.
— Ué, quando você me chamar...
— Falo tanto de você para a minha mãe que ela me mandou fazer o convite.
E a ocasião especial foi quando a Prof.ª Neiva nos pediu para montar a réplica de uma quadra de voleibol valendo dois pontos na média, pois naquele bimestre estávamos tendo aulas práticas de vôlei.
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Neide Franco sempre foi uma mãe participativa e liberal, mas com ressalvas. Fazia questão de saber com quem os filhos estavam se comunicando e por isso abria as portas de casa para receber a todos, a fim de analisar um por um, sobretudo quando Leonardo decidiu andar com o grupo do Roni.
Contou-me Mariana que Neide não gostava de Juliana e se não se opunha a amizade, também não a recomendava. Não à toa vivia preocupada: o filho mais velho já havia reprovado o quinto ano algumas vezes e Mari era desinteressada.
— Não é a matéria que é difícil, você que é muito preguiçosa — Neide acusou a filha num dia em que fui dormir lá e encontrei a mãe da Mari cozinhando brigadeiros, beijinhos e outros docinhos, pedindo a nossa ajuda para colocá-los nas forminhas coloridas apinhadas numa travessa redonda de aço.
— Ai, mãe, não me enche! — Retrucou Mariana, roubando alguns brigadeiros e colocando-os no colo.
— Ai, mãe, ai, mãe! — Arremedou Neide, que levantou a questão do sumiço dos docinhos. — Você não trabalha, não tem doença nenhuma, não tem que se preocupar com nada. Sua única responsabilidade é estudar, então pelo menos faça alguma coisa que preste em vez de passar o tempo todo vendo televisão e gastando pulso no telefone com quem não merece...
Mariana abriu carranca.
— Ainda preocupada com isso, mãe? Isso dá para recuperar!
— Mas eu não estou vendo nenhum empenho da sua parte para “recuperar” as notas. Por que você não segue o exemplo da Tita e começa a estudar mais?
Não foi por falta de empenho da minha parte, eu tentava incentivar minha amiga a entregar as tarefas de casa e estudar um pouquinho todo dia, mas Mariana tinha gênio difícil e audição bastante seletiva. Se o assunto não envolvia meninos ou o que estava acontecendo na novelinha, não lhe interessava nem um pouco.
― Você continua muito nova para pensar em namoricos ― aconselhou a mãe. ― Quem procura, acha.
― Ai, mãe!
― Ai, mãe. Ai, mãe… ― Neide imitou a voz escandalosa da filha de um jeito que me fez rir. ― Ai, mãe, que se eu falasse com a minha mãe do jeito que você fala comigo, levava um tapa na boca. No meu tempo filho não falava “nome”, não se entupia de porcaria e respeitava aos mais velhos.
— No seu tempo.
— Tempos bons, aqueles nos quais os pais tinham mais pulso firme. Sou muito permissiva, já perdi as rédeas com o Leonardo e não perderei com você.
— Aff, todo mundo foi mal na prova do Emival.
— Se os outros foram mal, o problema é da mãe deles. Eu não sou mãe deles! Sou sua mãe e exijo que você estude para passar de ano porque outro filho repetente eu não aturarei!
Embora fosse um pouco “precoce”, Mariana Franco me proporcionou muitos momentos divertidos. Nunca me esquecerei das brincadeiras na rua onde ela e o Léo moravam, dos abraços apertados que Neide dava em nós quando nos chamava para comer, da hora de dormir quando esticava as cobertas das meninas e dava beijo de boa-noite, dos conselhos que nos dava.
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Por falar na troglodita, ela desgostava das minhas companhias e torcia o nariz ao ter que me levar até a casa de Mari com mais frequência:
― Você está indo demais à casa dessa menina! — Disparou Meire naquela sexta-feira, quando mal coloquei os pés para dentro de casa.
― A Mari é minha amiga!
— Essa menina não tem mãe, não? Não me surpreenderia nada se ela fosse uma largada porque vocês estão se falando demais e eu não estou gostando nada disso, Renata. Isso me cheira a coisas que nem quero falar.
Horácio, que ouviu aquela discussão, interveio:
— Não seja tão turrona, Meire.
— Já está na hora de separar antes que essa menina me dê desgosto… não criei filha minha para isso.
— Deixe de ser paranoica. Elas são apenas crianças.
— A Mari gosta de mim e a D. Neide tem muito carinho por mim.
— Isso é o que ela diz na sua frente. Pelas costas eu aposto como ela deve falar mal de você, reparar seus maus modos, que você come demais e é uma interesseira!
— Eu não sou interesseira! Estou tentando auxiliar a Mariana a melhorar as notas porque a D. Neide se preocupa muito com o futuro da Mariana.
— E com razão! — Debochou a troglodita. — Aquela lá é uma descabeçada! Você tem dedo podre para fazer amigos, hein, menina. Só arruma traste. Imagina só quando chegar a idade dos namorados… Bom… se bem que acho difícil que você vá arrumar um namorado algum dia.
― Nem penso em namorado.
― E aí de você se pensasse.
— Não ligue para o que a sua mãe diz, Tita. — Horácio aconselhou. — Você vai encontrar um namorado quando for a hora certa e fará uma boa escolha.
Meire, revirando os olhos, retirou-se.
Mariana era preguiçosa e estava indo muito mal nos estudos, sobretudo em matemática. Nem sequer desenhava na aula do Emival porque entregando qualquer rabisco ele dava visto de participação porque eles, somados, representavam uma nota significativa. Pelo contrário, ela não via a hora de arrumar um namorado e contava nos dedos para isso.
Com Roni não deu certo porque antes da Páscoa, ele ficou com a Rafaela. Foi um bafafá daqueles, com direito a uma Mari Franco estrilar, pisar fundo de ciúmes e chorar tão alto que quem nos visse poderia pensar que houve um atropelamento em frente à escola.
As rixas entre as meninas das duas quintas séries se acirraram por conta do namoro do Roni com a Rafaela, porém o namorico durou pouco porque o garoto não sossegava, continuava jogando beijinhos e fazendo charme para as outras.
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