Simplesmente Tita — 21⁰ Capítulo

 


A Copa do Mundo sediada na França vinha embalada pela expectativa otimista do pentacampeonato. Não tínhamos aula quando o Brasil entrava em campo, Horácio não tinha expediente e a cidade parava, até parecia primeiro de janeiro com aquele silêncio todo.

Meire considerava desnecessário todo aquele alarde e não fazia questão de saber nada sobre a cerimônia de abertura do primeiro torneio com 32 seleções divididas em oito grupos, tampouco assistir ao jogo de estreia.

― Por isso esse país tem a fama ruim que tem ― Discursou Meire das Neves, odiadora número um de eventos esportivos de grande repercussão, datas comemorativas e tudo mais que unisse as pessoas. ― Em vez de melhorarem a qualidade da educação, dos postos de saúde, ficam aí chorando por jogador de futebol, parando tudo para ver joguinho inútil, como se isso fosse pagar as contas de todo mundo. Se torcer contra a seleção fizer de mim antipatriota, então eu sou.

― Mas é só um jogo, mãe.

― E por acaso eu lá sou obrigada a gostar de futebol? Tenho o direito de não gostar. Quem perde ou não com os jogos são os jogadores e os anunciantes, esses que saem ganhando em cima das estrelinhas. Nós, meros mortais, nada. Só perdemos tempo depositando expectativas nessa seleção que quando é para ter um bom desempenho perde até para time africano. Vê as Olimpíadas de Atlanta? Fizeram o auê que fizeram e perderam para a Nigéria. Que fiasco! Ao se colocar muita expectativa em cima de alguém ou de alguma coisa, sempre resultará em decepção. E tenho dito. O Brasil não será campeão. E se for: no que isso altera o rumo da minha vida?

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Todo mundo entrava no clima, até a Prof.ª Daniela, que nem era tão chegada a futebol, comentava sobre o torneio. Mariana Franco, por exemplo, elegia os jogadores mais gatos com quem pretendia se casar. E não era a única.

Emival arranjava qualquer desculpa para não dar aula, logo, nos deixava ligar a televisão e ainda que fossem partidas de outras nacionalidades, copa é copa, só acontece a cada quatro anos. Nosso docente sabia de cor e salteado as escalações das seleções de 1958, 1962 e 1970, falando com certo rancor de 1966. Mantinha uma postura crítica aos trabalhos do técnico Zagallo, mesmo o admirando, pois já mostrava desencanto pelos craques daquela safra, sobretudo depois do vexame para a Nigéria lá nos Jogos Olímpicos de Atlanta.

As crianças queriam completar o álbum da copa, todas, todas elas. Mamãe não quis me dar, mas Horácio a contrariou. Das figurinhas que comprei, nenhuma era da nossa seleção, a maioria era repetida e ninguém queria trocar comigo. Quem nunca passou por isso, não sabe o que é drama.

Havia bandeirinhas verdes e amarelas por todo canto, flâmulas do Brasil penduradas nas fachadas das casas, no retrovisor dos automóveis, calçadas pintadas com as cores da seleção e em dia de jogo até a programação do rádio mudava para privilegiar as canções de carnaval para entrar no clima.

Eu, por exemplo, colocava os bichinhos de pelúcia no sofá e brincava de copa com eles, fazendo de conta que era narradora e repórter, aquela que no final do primeiro tempo conversava com o treinador, tentava dar uma palavrinha com o capitão e vibrava com os gols do Ronaldinho, que no meu time de brinquedos era um urso marrom parecido com o Pooh (devido à camisetinha vermelha).

Acompanhei o torneio na televisão de 14 polegadas que foi para o meu quarto no Natal anterior, quando Meire e Horácio adquiriram um aparelho de 29 polegadas para a sala e levaram o antigo para o aposento do casal.

Meire desejava morar em outro planeta para não ouvir falar de futebol.

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No dia da final entre Brasil e França, Mari Franco me convidou para ver a partida na casa dela e lá fui eu, a contragosto de mamãe, que declarou que a França se sagraria campeã. Bati três vezes com o punho fechado na mesa de centro antes de a Mariana Franco vir me buscar.

Na maioria das casas o clima era de festa. Uns chamavam os outros para ver o jogo, independentemente do resultado, embora todos quisessem uma goleada de Ronaldo. Até eu, por que não?

O pai da minha amiga comprou uma televisão de 29 polegadas e os parentes estavam reunidos. Som alto, churrasco assando, D. Neide a mil por hora na cozinha, vigiando os fornos. Pudim de leite em um e bolo prestígio no outro. Maionese na geladeira. Mariana e eu enrolando os brigadeiros e beijinhos, salpicando-os no granulado e no coco ralado, nas respectivas tigelas. Minha amiga, no entanto, estava mais comendo do que ajudando.

― Estou de olho em você, dona Mariana!

― Eu pedi e você não deu. ― Explicou a Mariana Franco, mimada de nascença.

― Você? ― Neide, austera, redarguiu. ― Com quem você pensa que está falando, Mariana Franco? Eu não sou você, sou senhora. Aprendem essas manias na escola. Vê se não come demais para não ficar com dor de barriga depois.

— Nem comi tanto assim…

— Eu te conheço faz onze anos, Mariana. 

— A culpa é sua, que faz comida gostosa e depois me dá bronca porque como demais.

— Olho maior que a barriga é pecado, viu? — Advertiu Neide, que só gostava de futebol na copa e pouco antes do jogo, quando finalmente pôde sair da cozinha, sumiu para tomar banho, se embonecar e se juntar à galera na sala, todos vestiam a camiseta da seleção canarinho.

Meire não me permitiu comprar uma camiseta no camelô, todavia Mariana me emprestou a dela e uma bandana verde com estrelas amarelas. Nós duas escrevemos “BRASIL” na testa com tinta guache azul.

A televisão, óbvio, estava sintonizada na RPN, que fez uma brilhante cobertura do mundial inteirinho e desde o início do dia apresentou programas especiais, mesas redondas e mostrou o ônibus da seleção chegando até o estádio onde seria sediada a grande final. Só assim para o povo se aquietar um pouco. De quando em quando ouvíamos sons de buzina, corneta e rojões.

Dois minutos depois, o silêncio tomou conta da casa. De todas elas. A única voz a ressoar era a do Rubão na televisão. E tão somente.

Com o primeiro gol da França, aflição. A reação viria. Toleraríamos os cacoetes do Rubão se autopromovendo, os gritinhos exagerados quando a bola chegava perto do travessão. Todos se levantariam do sofá para comemorar a grande virada. Não veio. Um segundo gol. Unhas roídas, lágrimas acudidas nas pupilas. O tempo corria no cronômetro. Ainda havia tempo de levar para a prorrogação, ainda que prolongasse a ansiedade do público.

Nós crianças chorávamos inconformadas, queríamos entrar naquele estádio e decidir a partida, não aceitávamos aquele resultado injusto. Brigadeiros não nos consolavam. Concordar com Meire era mais difícil do que pensava. Porque eu não queria. Não naquele dia. Expectativas culminam em desilusões. O terceiro gol da França era a prova nítida disso.

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