Já as menininhas não achavam a menor graça naquilo, porém eram fanáticas por boy bands, pagodeiros e mais ainda pelas Piquititas, não perdiam um só capítulo por nada no mundo. A novelinha já estava na terceira temporada e era febre entre crianças e adolescentes da minha geração.
♏♏♏
Seria uma tremenda injustiça esquecer-me do filme que levou várias estatuetas na cerimônia do Oscar daquele ano e alcançou recordes de bilheteria. Afinal, de contas, Titanic fez parte da minha história.
Eu ouvia tanta gente falar da história que aquela curiosidade crescia dentro de mim. Mariana Franco estava apaixonada pelo filme e já havia ido duas vezes ao cinema, contando que não conseguia não chorar no final, porém não me dava spoiler nenhum.
— Faz tempo que estou pedindo à minha mãe e ela diz que não, não é não! — Confessei para as meninas no recreio.
— Por quê? — Quis saber Mari Franco.
— Não sei.
— Que não seja por isso, Tita. Semana que vem vou ao cinema de novo com a minha mãe e como falo tanto de você lá em casa, ela quer muito te conhecer.
— Você fala só da Tita, é? — Mari Oliveira ficou toda enciumada.
— Pelo visto, só a Tita é sua amiga… — alfinetou Juliana, que soou ríspida.
— Mas como fui ter um bando de amigas ciumentas, hein? — Suspirou Mari Franco. — Convidei a Tita por primeiro porque eu nem sei se vocês não vão me dar bolo.
Ficou combinado que iríamos ao cinema na sexta-feira santa. Por mim, tudo ótimo. Feriado era sinônimo de ficar mofando em casa e eu estava em dia com as atividades escolares. Com isso, passei a economizar os trocados do lanche para pagar o ingresso e um balde de pipoca, embora a Mari Franco insistisse que tudo era por conta da mãe dela, a D. Neide.
No entanto, durante a semana tivemos uma baixa: a Mari Oliveira não poderia nos acompanhar porque sua família levava a religião muito a sério e também porque o pastor da igreja dela orientou os fiéis a boicotarem o filme por supostamente fazer “apologia ao satanismo”.
Animada, Mari Franco me telefonou na véspera:
— Tita, o filme é bem, bem, bem longo, tem mais ou menos quatro horas, então a minha mãe perguntou se pode passar aí na sua casa para te buscar às 13h porque a sessão começa às 14h e as filas para comprar os ingressos são bem grandes…
— Sério, não vejo a hora de estar lá!
— Minha mãe está até mais animada do que eu, tanto para o filme, quanto para conhecer você.
— Diga a ela que eu também quero muito a conhecer.
— Já que está tudo certo, então a gente se vê amanhã, tá bom?
Eu não entrava numa sala de cinema havia quase três anos, a última vez foi para acompanhar Toy Story, quando papai já estava namorando a Helena.
♏♏♏
Despertei na sexta-feira pela manhã, tomei banho bem cedinho para os cabelos estarem secos quando a D. Neide chegasse. As borboletas bailavam no estômago, não só pelo filme em si, mas porque eu amava aquele encanto de entrar na sala, me acomodar na minha poltrona e me sentir num sonho.
Escolhi uma calça jeans, uma blusa de manga comprida para ficar por baixo do moletom lilás com capuz e, claro, calcei o meu amado allstar preto. Escolhi uma tiara de pano para dar aquele toque especial e sentei-me na cama, sentindo uma alegria que não cabia em mim. Nunca uma simples manhã custou tanto a passar.
Fomfom. Fomfom. Fomfom.
Meu coração pulou no peito. Abaixei o volume do rádio por notar o Ford Fiesta verde-oliva parado em frente à minha casa. Chequei a bolsinha do Aladdin pela última vez e lá estavam meus trocados, o documento de identificação e a carteirinha de estudante que asseguraria a meia-entrada. Tudo nos conformes.
Olhei-me pela última vez no espelho do guarda-roupa, fechei a porta do quarto e dirigi-me até o corredor, apenas esperando que Meire me chamasse para receber as visitas.
— Está febril a coitadinha? — Murmurou a D. Neide.
Meu coração quase parou por alguns segundos.
— Noutra oportunidade Renata as acompanhará. — garantiu Meire, cínica, dispensando Neide. — O médico recomendou que Renata ficasse de repouso absoluto e você sabe que gripe é um negócio que passa, ela está com a garganta inflamada, passou a noite toda com febre e eu não seria negligente de deixar a minha filha sair por aí para piorar e ainda por cima contaminar a senhora e a sua filha.
— Eu que o diga. Mariana quando pega gripe fica um farrapo. É uma pena, ela vai ficar muito triste, mas também sou mãe e entendo a sua preocupação... Que a Tita se recupere bem...
A vontade era aparecer no meio da sala e desmentir mamãe, contudo, senti as forças se esvaindo e mais uma vez a frustração abraçando-me pelas costas.
— Diga que a Mariana e eu sentiremos falta dela e que esperamos que ela se recupere muito bem...
— Direi... Feliz Páscoa para vocês também!
Quando mamãe passou a chave na porta principal, trancando-a e suspirando com alívio, eu ainda estava em estado de choque:
― Mãe!
― Por que a senhorita está toda arrumada? ― Meire olhou para mim da cabeça aos pés.
— Eu… eu…
— Eu o quê, mocinha?
— Eu ia ao cinema.
— Disse muito bem… — Meire me aplaudiu com sarcasmo. — Ia. Você ia ao cinema. Não vai mais.
— Mas…
— Lembre-se: você está de atestado.
— A senhora sempre disse que é feio mentir e está fazendo isso. — Murmurei, recusando aquele abraço sorumbático de outra frustração que visava arrancar mais lágrimas do que aquelas que eu já conhecia de decepções passadas, sem saber que viriam tantas outras mais salgadas e ardidas na alma.
― A propósito, sua respondona, quem é que te deu permissão para ver aquele filme ridículo? ― Meire puxou a minha orelha esquerda.
― Marquei de ir ao cinema com a Mari Franco e as outras meninas, todas elas falam que esse filme é muito bom e a Dona Neide estará com a gente. ― Permaneci próxima à porta, como se pudesse através da telepatia chamar a D. Neide e a Mariana, mostrar-lhes que eu estava perfeitamente bem e que ainda dava tempo de chegar para a sessão das duas, que aquela tarde não estava perdida.
— E eu já disse que não, Renata!
— Por que não?
— Porque eu não quero, tá bom?
Meire acomodou-se no sofá de três lugares e aumentou o volume do televisor.
— Quero ouvir o que está passando no jornal. Dá para a senhorita calar essa boca?
Quanto mais eu tentava falar, Meire aumentava o volume da televisão, até que desligou o aparelho.
― Já disse para você parar de chorar, menina. A menos que queira uns bons motivos para chorar.
— Eu te obedeço, estudo direitinho, não deixo o quarto bagunçado, não durmo tarde e quando peço só uma coisinha, a senhora me nega.
— Não estou gostando desse seu tom, menina. ― Zombou Meire. ― Quem você está pensando que é? Está pensando que pode mandar em mim? Pois não se gabe, queridinha, pois não faz mais do que a sua obrigação e ainda faz de um jeito medíocre, diga-se de passagem.
― Poxa vida, mãe! Por que a senhora é tão má? Por quê?
Sem dizer palavra, Meire se levantou do sofá, avançou contra mim, pressionou as duas mãos em meus ombros, sacudindo-os com força. Era só raciocinar à força dela contra a minha. Eu nada podia fazer.
― Mãe, para, por favor!
― Você não vai ver filme nenhum.
Meire das Neves esbofeteou-me o rosto, rasgou meu vestido rosa-chá com estampas florais e eu, no auge do desespero, esgueirei-me corredor adentro, sendo alcançada sem oferecer resistência por aqueles atrozes braços cujas mãos esbofeteavam e socavam com bastante naturalidade.
A porta do meu quarto foi aberta e eu empurrada lá dentro. O chicote ficava escondido na despensa com a vara e o fio de luz. Na hierarquia das surras, as cintadas e chineladas doíam menos, não tanto quanto ser deitada de bruços na cama, ter a calcinha abaixada e levar tanta chinelada que o calçado arrebentava.
― Da próxima vez que a senhorita sair marcando passeio sem me consultar, o papo vai ser com a titia vara…
Irredutível, Meire me trancou pelo lado de fora, de modo que eu só poderia sair quando ela determinasse. Lembro-me até hoje daquele dia horrível e abafado que custou a passar, das lágrimas que não cederam até o primeiro suspiro de rendição.
Na manhã seguinte, a porta estava destrancada e a troglodita portou-se como se nada tivesse acontecido. Foi deprimente na segunda-feira ver as meninas suspirando pelo Di Caprio, contando todos os detalhes do filme, marcando de assistir outra vez.
Irromper em lágrimas e delatar a crueldade de Meire das Neves não anulava a frustração, ninguém teria interesse em escutar meus dramas, logo, quando fui inquirida sobre o febril feriado, assenti com a cabeça e confirmei que estava me sentindo melhor, todavia o âmago estava em carne viva como algumas partes do corpo e a tristeza que eu sentia nem mil coelhinhos de chocolate curariam.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥