A menina com pulseirinha de ábaco
A chegada da 5ª série era um marco esperado com ansiedade. Finalmente, ela poderia usar cadernos universitários de capa dura, com cartelas de stickers, e escrever com canetas coloridas. Mas, com esse novo ciclo, vieram também as desigualdades que pareciam crescer ao seu redor. No colégio, foi colocada no limbo da pirâmide social. Não era considerada bonita pelos padrões do bairro, não foi escolhida para ser a princesa na peça de teatro — um papel que lhe foi tirado de última hora para privilegiar outra menina, loira e magra, que nem parecia se importar com a atuação.
Clara caminhava em um grupo onde fofocas e falsidades eram constantes. Faziam-na sentir-se irrelevante, sem graça, excluída das coisas legais e as comparações eram inevitáveis. Mochilas de rodinhas, bolachas recheadas, lanches caros — esses símbolos de posição no colégio sempre contrastavam com a simplicidade da realidade de quem levava Bolachas Maria e uma mochila básica, detalhes que pareciam carregar um peso imenso na balança social das crianças. Clara cresceu achando que precisava ser como aquelas meninas impecáveis, que viviam em condomínios fechados, tinham tudo o que queriam e pareciam estar sempre no centro das atenções.
Carregar o peso das comparações pode ser ainda mais difícil ao ter somente 10 anos. No colégio, o bullying ia além dos objetos ou status; atacava diretamente quem ela era. Os padrões de beleza da época, idealizados e inatingíveis, reforçavam rótulos dolorosos que pareciam segui-la em todos os lugares.
Em um dos momentos mais humilhantes, foi pressionada por colegas a beijar um garoto que a perseguia — um garoto que ela não queria e de quem tentava fugir. Desesperada, correu, tudo para escorregar e cair em uma poça de lama. Enquanto isso, as meninas ao redor entoavam uma música popular da época, usando-a para intimidá-la e reforçar a humilhação. Até hoje, aquela melodia ecoa na mente de Clara como um lembrete dos dias em que se sentia completamente vulnerável.
Elas rebolavam ao som de Rick e Renner, falavam sobre garotos e se preocupavam em não estarem “encalhadas.” Para elas, Clara era “criancinha demais,” com suas tiaras coloridas que os meninos achavam “bregas.” Quando tentou usar uma gargantilha tribal da moda, disseram que seu pescoço era feio. Tudo nela parecia ser motivo de ridicularização. Por mais que tentasse, nunca parecia ser suficiente para aqueles padrões.
Mas sua história era diferente. Seu pai, que casou aos 37 anos e foi pai dela aos 41, lidava com comentários sobre sua aparência mais velha, era o retrato da disciplina e dedicação. Ele sempre acordava cedo, preparava o café e fazia questão de acompanhá-la naquela longa caminhada até a escola, sob o calor intenso do verão ou o frio cortante do inverno. Enquanto isso, sua mãe, com sua força incansável, segurava as rédeas da casa e cuidava de todos com amor e empenho.
Embora fosse motivo de piadas, o velho Fusca era um símbolo de liberdade para Clara e sua família. Ele trouxe possibilidades antes inimagináveis — passeios ao mercado sem depender das entregas noturnas das Kombis, visitas às avós, momentos no parque e a chance de chegar à escola sem enfrentar longas caminhadas sob o sol de 30 °C ou o frio de 0 °C. Para Clara, o Fusca era mais do que um carro; era um símbolo de esforço, dignidade e das conquistas de seus pais, o reflexo da parceria e amor que nunca deixaram de existir dentro de sua casa, apesar das adversidades, mesmo chacoteado por gente que nem veículo tinha e mais ainda das patricinhas com seus Ford Fiesta, Tempra e afins.
Clara adorava assistir ao programa do Chaves. Para dar risadas, como também pela identificação que sentia com os personagens. Chaves e Chiquinha, com sua realidade humilde, lembravam muito sua própria infância, enquanto o Quico, sempre exibindo seus brinquedos novos, refletia as meninas do colégio que tinham tudo o que queriam sem esforço. O mundo dela também carregava aquele contraste constante entre o pouco que tinha e o muito que via os outros exibirem.
No recreio, as meninas já estavam envolvidas com os rituais de impressionar garotos — saber rebolar ao som dos hits do momento, discutir quais olhos claros eram os mais bonitos ou eleger o integrante da boyband mais “perfeito” para casar. Clara vivia em um universo paralelo. Ela até ouvia falar das boybands, mas não entendia a obsessão por decorar datas de aniversário ou imaginar futuros namoros. Seus interesses iam em outra direção — brincadeiras de imaginar e criar mundos únicos, desenhando mapas de reinos fictícios ou escrevendo histórias em seus cadernos.
Um cisne chamado Clara
A mudança de colégio trouxe novos rostos e uma esperança tímida de que, talvez, as coisas pudessem ser diferentes. Porém, o bullying ainda estava lá, como uma sombra persistente. As meninas continuavam falando de garotos, elogios aos olhos claros e às aparências impecáveis, enquanto Clara ainda gostava de imaginar e explorar seus mundos próprios. Ela se esforçava para encontrar seu espaço, tropeçando nos códigos sociais que pareciam impossíveis de decifrar.
Mesmo assim, havia momentos de alívio. Ao fazer amigas com quem dividia cachorros-quentes no recreio e apostava corrida nos pátios, ia suportando cada dia. Eram laços simples, porquanto sinceros, que traziam um pouco de leveza para tamanha carga emocional.
Foi naquele colégio que, pela primeira vez, um menino se aproximou dela de forma diferente. Ele não se importava com os padrões nem com a opinião dos outros, gostava de sua risada, das conversas e das piadas que ela sabia contar. Fazia questão de estar por perto, um contraste gritante com os meninos que ainda carregavam comportamentos de desdém e preconceito.
Mesmo com essas pequenas vitórias, Clara ainda lutava com uma insatisfação persistente sobre si mesma. As páginas das revistas eram implacáveis: modelos magras e altas, quase irreais, definindo o que era ser bonita. A menininha se via desesperada para mudar algo, mesmo sem saber exatamente como. A pressão de se enquadrar em padrões inalcançáveis era sufocante, mas, ao mesmo tempo, ela continuava buscando um espaço onde sua voz e sua essência pudessem existir. Essas marcas moldaram sua visão do mundo e, por muito tempo, sua autopercepção e não ser considerada bela ou suficiente, feridas que parecem nunca cicatrizar.
Houve um dia em que Clara recebeu algo que nunca esperava: uma carta de amor. O menino que sempre esteve por perto, com sua gentileza e paciência, havia colocado seus sentimentos em palavras, numa tentativa de alcançar aquilo que via de especial nela, porém não teve resposta. Não porque não se importasse, mas porque a vida tomou um rumo inesperado. A mudança para uma escola militar, num turno só de meninas, veio como um turbilhão que afastou o menino e seus sentimentos. Voltou a ser o "patinho feio" maltratado pelas riquinhas metidas a sabe-tudo, que encontravam prazer em subjugar a colega solitária e indefesa. Os tempos de cisne descolado soavam uma lembrança distante.
Sempre haverá um feixe de luz na escuridão
Clara deixou a infância para trás aos poucos, carregando consigo todas as marcas dos anos anteriores. Ao entrar na adolescência, começou a perceber que, apesar das dificuldades, havia algo em sua história que a tornava diferente. Essa percepção, contudo, não veio sem desafios; os anos escolares restantes continuaram sendo um campo minado de comparações e inseguranças.
Foi no colégio militar que Clara descobriu o verdadeiro poder da escrita. Naquele ambiente rígido, cercado de regras impiedosas e dinâmicas que sufocavam qualquer traço de individualidade, era fácil sentir-se perdida. Ali, era apenas mais um número, uma aluna a ser moldada por padrões que pareciam ir contra tudo o que ela era. As zombarias não cessavam e havia pouco espaço para expressão ou criatividade. Desse cenário despontou a coragem e o irresistível chamado da coragem.
A escrita tornou-se companheira inseparável, sua forma de resistir e sobreviver ao que restava do ensino fundamental. Entre os cadernos e a agenda que preenchia com histórias, desabafos e pequenos versos, Clara descobriu um lugar onde podia ser livre, onde as regras do colégio não tinham alcance. A cada página escrita, sentia recuperar parte de si mesma, do que era essencial e único. Era como se, através das palavras, pudesse gritar sem medo de ser silenciada.
Mais do que um refúgio, a escrita era uma ponte para o mundo exterior. Enquanto as aulas seguiam com rigidez, Clara sonhava e criava. Nos textos que rabiscava no fichário e nas folhas de papel amassadas no fundo da mochila, ela desenhava universos onde as regras eram suas, onde a beleza não era um padrão inalcançável, e onde as palavras tinham o poder de reconstruir o que o dia-a-dia insistia em quebrar.
Foi esse hábito que fez Clara suportar os dias mais difíceis. No colégio militar, a escrita não era apenas uma válvula de escape, mas também uma prova de que, mesmo em um ambiente que tentava apagá-la, ela ainda brilhava. Cada palavra era um pequeno ato de resistência, uma declaração silenciosa de que ela não seria moldada ou silenciada.
Marrenta, sim
Quando Clara finalmente deixou o colégio militar, parecia que um peso saía de seus ombros, contudo, o alívio foi passageiro. Tudo que suportou naquele ambiente rígido — as zombarias constantes, a supressão de sua individualidade, as regras sufocantes — deixou cicatrizes que não seriam apagadas facilmente. Ela havia atravessado dias difíceis com a ajuda da escrita, mas, agora, ao encarar a adolescência, viu-se às voltas com um novo e mais silencioso adversário: a depressão.
As marcas daqueles anos pesavam mais do que Clara admitia, mesmo para si mesma. O isolamento que sentiu ressoava em sua mente, como se a rejeição e o desamparo tivessem se enraizado profundamente. Não era fácil encontrar leveza ou ânimo. Havia dias em que tudo parecia cinza, em que os mundos imaginários que antes a sustentavam pareciam distantes e inalcançáveis.
Apesar disso, Clara continuou escrevendo. Agora, suas palavras eram um misto de desabafo e busca por compreensão. Escrever era sua forma de dar sentido à confusão de sentimentos que a rodeavam. Era um lembrete de que, mesmo quando tudo parecia escuro, ela ainda tinha a habilidade de criar. Embora enfrentasse momentos de dúvida e vazio, a escrita era como uma chama pequena, mas constante, que a mantinha seguindo em frente.
No entanto, não foi apenas através das palavras que Clara começou a encontrar pequenas luzes em meio à escuridão. Foi também através das conexões com outras pessoas que, como ela, carregavam suas próprias cicatrizes. Ao conhecer adolescentes órfãos, jovens que precisavam trabalhar cedo para sustentar a família ou que lidavam com os desafios de divórcios em casa, ela percebeu que não estava sozinha em sua luta. Essas histórias, tão diferentes e ao mesmo tempo tão próximas da dela, começaram a lhe dar uma nova perspectiva. Mostrar a realidade da adolescência que as produções audiovisuais pareciam ignorar.
A identidade de Clara fortaleceu-se e ela passou a retrucar os idiotas, sem se deixar abalar pelos comentários ou "dicas" para mudar sua personalidade. O estilo "dark e fofo" tornou-se sua marca, um misto de ousadia e leveza que intrigava todos ao redor. Seus amigos a chamavam de "patricinha" — mais por um contraste do passado do que por qualquer materialismo verdadeiro. Afinal, chegar à escola no Gol prateado de seu pai, com fichário bonito e canetas de gel, parecia algo distante daquela menina do Fusca.
Clara, por sua vez, não ligava para os rótulos que os outros tentavam colar nela. Seu fichário era mais do que um símbolo de escolaridade; era o epicentro da criatividade. As folhas preenchidas, as palavras que tomavam forma ali, despertavam curiosidade. O que poderia estar por trás daquelas capas? Que histórias tanto escrevia? Ela não precisava explicar, porque sabia que suas palavras falavam por si mesmas. Ainda assim, quando alguém ousava ridicularizá-la, sua resposta não era silenciosa. Marrenta como nunca, estava pronta até para bater em quem tentasse apagar sua luz ou interferir em sua essência.
Aos poucos, sua percepção do mundo começou a se expandir. Clara vivia observando e absorvendo o mundo ao seu redor, mas ainda não sabia como canalizar tudo isso. Era algo que levaria tempo. Leituras, conversas e a própria experiência foram moldando sua visão de vida. Mesmo sem perceber, estava construindo uma bagagem emocional e intelectual que se tornaria o alicerce de sua escrita e, mais tarde, de sua busca por algo maior. Era reservada não por não ter nada a dizer, mas porque aprendeu desde cedo que suas palavras eram frequentemente ignoradas. Quando tentava mostrar sua arte, diziam ser “loucura”, “esquisitice” ou ridículo. Por muito tempo, acreditou nisso, até encontrar seus primeiros amigos virtuais, que reconheceram o valor do que ela criava e lhe deram confiança para continuar.
Entre luzes e sombras
No fim da adolescência, Clara encontrou um novo tipo de conexão: os amigos virtuais. Para ela, esses laços eram como pequenas janelas para um mundo onde sua escrita era valorizada e onde ela podia ser ouvida sem os julgamentos que enfrentava no dia a dia. Esses amigos, espalhados por lugares distantes, eram os primeiros a incentivá-la a continuar escrevendo, a acreditar que suas palavras tinham poder. Eles liam seus textos, comentavam com entusiasmo e, muitas vezes, eram o motivo pelo qual Clara sentia que valia a pena continuar.
Foi assim que Clara começou a escrever em um blog. Aos poucos, o blog deixou de ser um refúgio e se transformou em uma força. Cada história contada era um pequeno ato de resistência, mostrando que, apesar dos desafios, ela podia criar algo maior do que os traumas que a silenciavam. As palavras dela encontraram um público pequeno, mas genuíno, e, mais importante, um lugar onde ela podia ser verdadeiramente ouvida.
Mas, como em toda luz, havia sombras. Não demorou para que os perseguidores e abusadores encontrassem um jeito de transformar aquele espaço seguro em um campo de batalha. Eles atacavam Clara onde sabiam que doía mais: suas fraquezas e os traumas do passado. Usavam suas próprias palavras contra ela, distorcendo suas histórias e explorando suas inseguranças para se destacarem às custas dela. Era como se o objetivo deles fosse apagar a chama que Clara havia lutado tanto para manter acesa.
Houve um período na vida de Clara em que as palavras, tão essenciais para sua existência, começaram a desaparecer. Não porque ela quisesse, mas porque foram roubadas dela. O ambiente virtual, que inicialmente parecia um espaço acolhedor e de incentivo, transformou-se em um palco de humilhações públicas e crueldades calculadas. Seus perseguidores não apenas a atacavam, mas faziam questão de explorar suas maiores fraquezas e os traumas que ela carregava do passado. Eles usavam suas próprias inseguranças como munição, pintando-a como alguém sem valor, alguém que não merecia sequer o espaço para se expressar.
O medo que eles plantaram foi tão profundo que Clara passou a hesitar antes de escrever qualquer coisa — até no papel. Algo que antes era tão natural, tão libertador, tornou-se uma fonte de ansiedade. Cada palavra parecia carregada de um risco iminente, como se pudesse ser usada contra ela a qualquer momento. O fichário, outrora repleto de histórias e ideias, ficou fechado. As folhas em branco, que antes convidavam à criação, agora pareciam apenas uma ameaça.
Clara sentia como se a humilhação pública tivesse roubado sua essência. Ela, que sempre encontrava nas palavras a força para resistir, se viu sem ânimo, sem coragem. A vergonha imposta por aqueles que se alimentavam de sua dor a fez questionar tudo. Será que suas histórias realmente importavam? Será que ela realmente tinha algo a dizer?
Mesmo nesse silêncio forçado, havia algo dentro de Clara que se recusava a desaparecer completamente. A escrita, que um dia foi sua armadura, ainda vivia nela, mesmo que adormecida. As histórias que povoavam sua mente não podiam ser apagadas tão facilmente. E, aos poucos, começou a perceber que o silêncio não era seu, havia sido imposto. E era exatamente por isso que ela precisava quebrá-lo.
Clara sempre foi uma mulher fora dos padrões, o que gerava um conflito interno que, até hoje, carrega: um desejo de ser igual às outras, e uma consciência de que sua singularidade era, ao mesmo tempo, sua força e sua dor. O deslocamento sentido ia além da aparência ou das posses. Nunca foi popular, nunca criou modinhas, e nunca foi considerada a mais bonita. Por um tempo, achou que isso a enfraquecia, que a apequenava. Agora, entretanto, começa a ver que essa diferença foi sua maior resistência. Mesmo que o mundo tentasse ditar como deveria ser, Clara se recusava a se moldar. Ser diferente foi doloroso, como também a tornou resiliente. E, ainda que tudo pareça piorar, onde as pressões continuam e o deslocamento ainda a aflige, ela carrega dentro de si o orgulho de quem persiste. E sua arte, mesmo perseguida, fala pelas almas silenciadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Muito obrigada pela visita ao OCDM, espero que você tenha gostado do conteúdo e ele tenha sido útil, agradável, edificante, inspirador. Obrigada por compartilhar comigo o que de mais precioso você poderia me oferecer: seu tempo. Um forte abraço. Volte sempre, pois as páginas deste caderno estão abertas para te receber. ♥