Parte 2 | O falastrão calhorda
As falas criminosas de Tino Cavalli repercutem nas redes sociais e lá a treta rola solta. Muitos internautas concordam que o comunicador deveria ser afastado da atração e punido por fomentar a violação do Estado Democrático de Direito. Outros, no entanto, a exemplo da própria Comadre, o admiram pela “coragem” e estariam dispostos a tudo para defender o atual presidente.
— Preciso ter uma conversinha bem séria com você, Marcela. Você está completamente desinformada e precisa saber da verdade! — diz Comadre a si mesma.
💪💪💪
— Eu não suporto aquele bochechudo asqueroso! — reclama Marcela. — Ele só fala groselha e aquele programa dele é uma carnificina só, não sei como alguém consegue assistir a tudo aquilo sem desenvolver uma úlcera!
— Ele está convocando uma guerra civil ao vivo — explica Beto.
Augusto, a contragosto, sintoniza a TVTV e lá está Tino Cavalli surtando ao vivo:
— A libertinagem já alcançou patamares estarrecedores. Onde já se viu doutrinar nossas crianças a virar travesti? Hoje em dia virou modinha ser gay e lésbica…
💪💪💪
André está preparando o bolo da revelação e escuta as asneiras ditas por Tino, engolindo em seco, desconfortável e certo de que, infelizmente, uma boa parcela da população é homofóbica e utiliza versículos bíblicos descontextualizados para condenar o amor entre iguais, vivendo o que podemos entender como “hipocrisia seletiva”.
As palavras odiosas de Tino ecoam pela cozinha, enchendo o ambiente com uma atmosfera pesada e sufocante. André para de mexer na massa do bolo por um instante, sentindo um calor subir pelo corpo, como se estivesse sendo observado por olhos julgadores. Fecha os olhos, tentando bloquear as palavras, mas elas continuam a martelar em sua mente, revisitando memórias dolorosas de insultos homofóbicos que ouvidos ao longo da vida.
André amarga uma angústia profunda, como se um peso estivesse pressionando seu peito, dificultando a respiração. Sempre foi cônscio que ainda há uma parcela significativa da população que compartilha das mesmas crenças retrógradas de Tino. Muitas pessoas que, como ele, sempre se esconderam dentro do armário, não precisam de mais ódio e preconceito, mas respeito, acolhimento e o direito de existir.
— Essas palavras odiosas… como podem existir pessoas tão cruéis? Será que é possível viver sem medo de ser quem eu sou? Mas preciso fazer isso. Eu não sou menos homem por gostar de outros homens. Preciso mostrar a todos que ser gay não é vergonha nenhuma. Preciso ser forte, por mim e por todos que não podem ser, pensa André, voltando a ocupar-se com o bolo.
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— O pior de tudo é que a cara desse larápio nem arde! — comenta Augusto. — Qual a relação entre os gays e a pandemia?
— Que eu saiba, nenhuma! — responde Marcela.
— Desde quando se tornou da conta dele preocupar-se com a sexualidade alheia? — André se manifesta, irritadiço.
— Como se ninguém soubesse que aquela mulherzinha dele é de fachada — lembra Beto. — Pô, pai, cê sabia que ele é um enrustido? Só um trouxa muito desavisado para não juntar lé com cré e se mancar que aquele Léo Ponche é o namoradinho dele.
— Isso não tem cabimento! — concorda Marcela.
— Saber, todo mundo sabe, mas só vai deixando o tonhão se perder nas próprias mentiras. O cara é a própria contradição em forma de gente. O recalque dele é tanto que ele condena tudo que queria fazer e não pode, achando que ninguém desconfiará dele, que otário!
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André tira o bolo do forno elétrico e o coloca na ilha central da cozinha. Já preparou a cobertura e selecionou tudo que precisará para desenhar o arco-íris em tons pastel e a inscrição “EU SOU GAY”. Focado na decoração do bolo, suas mãos ligeiramente trêmulas enquanto espalha a cobertura e desenha o arco-íris com precisão.
— Está chegando a hora de enfrentar o meu pai. Estou meio sem jeito, meio nervoso, mas já convidei todo mundo para o Bolo da Revelação, um bolo todo fitness, quem é fitness pode comer sem culpa, eu mesmo que aprendi a fazer nessa quarentena, vou passar a receita no final do vídeo para quem quiser fazer.
Beto, curioso, tenta espiar o que o irmão está escrevendo.
— Boo!
— Porra, cara, quase me caguei na calça aqui! — reclama André, sentindo o coração acelerar com o susto.
Beto tenta espiar o que o irmão está escrevendo, ao que o rapaz tenta de todo jeito expulsá-lo da cozinha.
A tensão no ar é palpável, enquanto Beto se aproxima por trás de André.
— Deixa eu ver o que você tá escrevendo aí.
André, irritado, empurra Beto dali:
— Sai daqui, Beto! Isso é surpresa, não para você ficar xeretando!
— Qual é, mano, só quero dar uma olhada.
André sente o estômago revirar ao ver Beto tão perto do bolo. Ele sabe que precisa manter o segredo até o momento certo, mas a insistência do irmão mais velha está testando seus nervos.
— Beto, tô falando sério! Saia da cozinha agora. Preciso de um momento sozinho para terminar isso.
— Tá bom, tá bom. — Beto resmunga, mas obedece à ordem: — Mas vou descobrir de qualquer jeito, embora já desconfie…
— Desconfie do quê? — pressiona André.
— Sei lá, cara. Achei que você estivesse fazendo alguma brincadeira para o canal, tipo aquela vez que você fez um bolo gigante de whey protein. — Beto ri. — Mas agora estou começando a pensar que é algo mais sério.
— Como o quê? — indaga André.
— Sei lá, pô! Você deve ter conseguido a plaquinha de 100k e está fazendo o bolo que todo mundo faz quando chega lá.
— É, é tipo isso… — mente o jovem.
— Pensei que seria um halter ou um unicórnio, mas o arco-íris combinou. Não por nada, mano, mas agora você vai calar a boca de todo mundo que acha que a gente não deu em nada na vida e que trabalhar na internet não é trabalho de verdade.
André meneia a cabeça, aliviado, mas a alegria dura pouco porque ele e Beto escutam o ressonar da campainha e reconhecem a voz rascante de uma inimiga em comum…
Aviso: Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, empresas, lugares, eventos e incidentes são produtos da imaginação do autor ou são usados de maneira fictícia. Qualquer semelhança com eventos reais, locais ou pessoas, vivas ou mortas, é mera coincidência. A obra pode retratar a época em que está ambientada, mas quaisquer referências a eventos, organizações ou pessoas específicas não devem ser interpretadas como fatos históricos ou afirmações sobre essas entidades.
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