Parte 8 | Cuidado com o carma
João Velloso, o avarento e inescrupuloso dono da TVTV, abandona Tino à própria sorte. Seria difícil encontrar um substituto perfeito para o falastrão que chamava a atenção, mesmo sendo negativamente. Ver os equipamentos da emissora serem lacrados pelo oficial de justiça foi o suficiente para Velloso demitir o “menino dos olhos” e cumprir a determinação judicial, obrigando o canal a exibir programas educativos promovidos por entidades que militam pelas minorias nos horários dos noticiários da casa, agora comandados por uma apresentadora interina.
O estúdio da TVTV foi adaptado para um novo propósito. A iluminação suave realça as cores vibrantes do cenário, com tons de azul e branco predominando. Ao fundo, um painel exibe o logotipo da emissora juntamente com gráficos modernos e dinâmicos que destacam o tema do debate: “Os Danos do Racismo Estrutural no Brasil”. O cenário é complementado por plantas e objetos decorativos que criam uma atmosfera acolhedora e profissional.
A jornalista é uma mulher de presença marcante e eloquente. Seu cabelo Black Power está perfeitamente estilizado, realçando sua beleza natural e afirmando sua identidade. Ela veste uma blusa branca com detalhes em preto e usa acessórios discretos, como brincos pequenos e um colar simples. Sua postura é confiante e a desenvoltura mescla polidez e empatia ao dirigir-se aos telespectadores:
— Boa tarde a todos. No programa de hoje vamos discutir os danos do racismo estrutural em nosso país, um tema essencial e urgente. Para isso, temos a honra de contar com um painel de debatedores incríveis. Vamos apresentar os participantes desta conversa…
Dr. Marcos Silva, um renomado sociólogo, participa do debate diretamente de sua casa. Ele está sentado em um escritório bem iluminado, com estantes cheias de livros ao fundo. Usa óculos e veste uma camisa social azul-clara.
— É um prazer estar aqui, obrigado pelo convite.
Ana Ribeiro, professora, educadora e ativista, aparece na tela diretamente de sua sala de estar. Ela é idosa, tem cabelos cacheados e grisalhos e veste um vestido estampado com cores vibrantes. Ao fundo, um quadro com uma imagem de um símbolo da cultura afro-brasileira.
— Agradeço a oportunidade de participar deste debate tão importante. A educação é uma ferramenta poderosa para combater o racismo e promover a igualdade.
Juliana Costa, uma advogada especialista em direitos humanos, participa do debate de seu escritório. Ela veste um blazer preto e um colar de pérolas. Atrás dela, um quadro de diplomas e certificações que destacam suas conquistas profissionais.
— Estou honrada por estar aqui hoje. O racismo estrutural permeia diversas áreas da nossa sociedade, e é crucial que discutamos maneiras de desconstruí-lo.
A discussão é conduzida de forma saudável, com troca de ideias e não de insultos. Cada convidado tem a oportunidade de compartilhar suas perspectivas e experiências, indo totalmente na contramão do narcisismo sensacionalista de Tino.
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Enquanto o debate ocorre, Comadre está possessa e revira os olhos, demonstrando seu desdém pelo que está vendo na TV.
— Isso é um absurdo! Esse pessoal não tem nada a ver com a verdade. Só estão aqui para tomar o lugar do Tino. Vão ver só!
— A educação é fundamental. Precisamos de currículos que reflitam a diversidade da nossa sociedade e promovam a inclusão desde cedo — diz a professora Ana Ribeiro.
— Que falatório mais chato, não quero nada disso! Quero sangue, quero ver o circo pegar fogo, quero o Tino de volta, quero ver o Tino lacrando e calando a boca desses esquerdistas que precisam estragar tudo para ficar a gosto deles. Isso é um absurdo!
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As investigações avançam e revelam a verdade sobre o caso do menino Luan. Não só houve abuso de poder, como tentativa de adulteração do cenário do crime e a cereja do bolo: homicídio triplamente qualificado.
Diante das evidências contundentes, a justiça decide que João Augusto deve ser preso preventivamente para evitar atrapalhar as investigações. Ele é levado sob custódia, enquanto seu passaporte é confiscado para impedir qualquer tentativa de fuga do país.
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Noviça, que transforma sua revista eletrônica matinal com mais ênfase em notícias pela pandemia, cobre a repercussão da ordem de prisão dos policiais envolvidos no caso do menino Luan. Imagens de drones mostram a ação em tempo real para os telespectadores da RPN.
— Os outros dois policiais envolvidos no caso foram presos em suas residências, mais cedo — narra a apresentadora. — Na noite de ontem, o Tribunal de Justiça de Balneário dos Anjos emitiu uma liminar pedindo a prisão preventiva dos três policiais acusados de envolvimento direto na morte do menino Luan, de 15 anos, que chocou o Brasil…
As imagens mostram João Augusto sendo algemado e conduzido a uma viatura, enquanto a Comadre assiste, desesperada, sem poder fazer nada para ajudar o filho. Ela cai de joelhos, chorando copiosamente por ser cônscia da gravidade da situação porque, devido à comoção popular, as chances do policial escapar da (merecida) condenação são mínimas.
— A dor desta pobre mãe corta nosso coração — continua Noviça. — Provavelmente não pode acreditar no que o próprio filho fez. Como mãe, coloco-me no lugar dela, de total impotência e desamparo. No entanto, os avós de Luan estão com os corações partidos e não há indenização que devolva o menino à vida, ao seu lar, aos seus amigos, então, a única maneira que a família de Luan tem para se confortar é a esperança de ver a justiça sendo feita. O que está acontecendo hoje é uma lição para a nossa sociedade, a de que ninguém, ninguém, ninguém está acima da justiça.
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Na casa dos Prado Mendes, todos estão reunidos na sala, assistindo às notícias na TV. As imagens de João Augusto sendo preso e a reação desesperada da Comadre provocam um turbilhão de emoções.
— Nunca me ocorreu que o João Augusto pudesse ter feito isso. Ele sempre era tão calminho, obediente, parecia ser um cara tranquilo. As aparências enganam!
— Eu não tenho dó! — assume André. — Ainda mais se o Beto tiver razão!
— Razão no quê?
— Explica a história para a mãe porque eu não sou bom nesse lance de contar historinhas, ainda mais se tiver muitos detalhes, me perco todo.
Marcela vai da descrença ao choque conforme Beto destrincha as associações feitas nesse ínterim:
— Não posso acreditar que a Comadre tenha sido tão perversa. E pensar que no mês retrasado, quando a geladeira dela estragou, comprei uma geladeira nova e pedi para entregar na casa dela, sem ela precisar pagar nada porque eu sabia que ela não podia.
— Não era o brutamonte que ganhava bem?
— O João Augusto paga a pensão da filha, tem um monte de empréstimos e guarda dinheiro.
— Duvido que ela faria o mesmo se a situação se invertesse!
Os olhos de Marcela estavam úmidos.
— Quantas vezes ela passou o Natal conosco, ano-novo, as férias? Quantas vezes o Augusto e eu ajudamos a custear os tratamentos de saúde dela? Nunca nos ocorreu pedir um só centavo ou jogar na cara todos os favores que fizemos. Tudo foi de bom grado, de coração aberto. Só não posso acreditar que ela se deixou manipular completamente por político de estimação e se tornou essa pessoa horrível, impossível de conviver.
— Você nunca esteve errada por ajudar, mãe! — diz Beto.
— O problema de ajudar demais é que a pessoa vai se folgando — pondera André.
— A Comadre nunca teve uma vida fácil, meninos. Tudo sempre foi mais difícil para ela. Não se casou por amor, sempre teve uma situação financeira complicada, os filhos lhe deram muito desgosto, nada nunca foi do jeito que ela queria. Logo o João Augusto, a maior esperança dela, faz uma burrice dessas e coloca tudo a perder.
— Não por nada, mãe, mas com a criação que a Comadre deu para os filhos, não é nenhum espanto. — rebate André.
— Eu não pretendia cortar a Comadre para sempre, só por um tempo, até ela descobrir a verdade por conta própria. Estou preocupada com ela, tenho medo que essa dor seja grande demais para suportar.
Beto e André envolvem a mãe em um abraço-sanduíche.
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Na calada da noite, uma figura vestida com roupas pretas e um capuz encobrindo o rosto se aproxima furtivamente da casa dos Prado Mendes, estudando o ambiente. Portando uma embalagem de tinta spray e uma pedra enorme, caminha nas pontas dos pés e adentra a garagem coberta, tirando o celular do bolso da calça legging para ligar a lanterna.
A primeira providência de Comadre é agitar a embalagem da tinta spray para pichar a lataria do carro de André com insultos homofóbicos e desarrumando toda a garagem para simular a presença de um suposto invasor na casa dos Prado Mendes. Sem querer, uma lata de tinta despenca de uma prateleira e acerta o vidro da frente do carro de Beto. Assustada, ela larga o spray de tinta no piso de lajotas vermelhas e, na pressa, perde as pulseiras barulhentas que usa.
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A família Prado Mendes desperta com aquele barulho e se encontra ao pé da escada.
— O que foi isso? — pergunta Marcela, apavorada.
— Pode ser o gato do vizinho. Lembra que volta e meia ele entra na nossa garagem e fica aprontando? Deve ter derrubado alguma coisa lá dentro! — Augusto massageia os ombros da esposa.
— Dessa vez não tem cara de ser só o gato do vizinho! — insiste André.
— Deve ser um ladrão tentando invadir a nossa casa! — acrescenta Beto.
Augusto, ainda sonolento, amarra o cordão do robe azul-marinho e desce as escadas para desvendar o mistério. Os demais membros da família o acompanham.
— Fiquem aqui, vou ver o que está acontecendo.
— Tome cuidado, amor! Esse ladrão pode ser muito perigoso.
— Serei cuidadoso, querida. Agora, volte para dentro. Eu não devo demorar.
Augusto acende as luzes da garagem e fica estarrecido com a bagunça que encontra. Vidros quebrados, tinta espalhada, e o carro de André vandalizado. O cardiologista dirige-se para a parte da frente da casa. Lá na cozinha, Marcela e os filhos ouvem o barulho de algo caindo.
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