Mary Recomenda | A Pátria de chuteiras - Nelson Rodrigues 🏟️⚽


Se você, assim como eu, ama futebol, reserve um lugar para a resenha porque o Mary Recomenda de hoje está imperdível. Hoje é dia de mergulhar na alma desse esporte tão brasileiro, na companhia de um clássico que fala muito mais do que partidas e times, explora as emoções, os dramas humanos e os valores que fazem do futebol mais do que um esporte ou uma paixão, uma filosofia de vida. Com vocês, A Pátria de Chuteiras, de Nelson Rodrigues💛



A Pátria de Chuteiras vai além de um livro sobre futebol; é um mergulho na alma coletiva do Brasil. Nelson Rodrigues transforma cada jogo, cada time, em poesia. Para ele, o futebol transpassava as quatro linhas, era um reflexo dos valores, das paixões e dos dramas humanos que movem nossa sociedade. Sua escrita capta a essência das arquibancadas e do campo, onde cada lance é carregado de emoção e significado.
Rodrigues faz questão de mostrar que o futebol é mais do que uma simples prática esportiva. Ele o define como uma expressão cultural de valores profundos — ética, emoção, lirismo e história, tudo fundido num só espetáculo.

"Qualquer profissão há de ter um sentido ético que a justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima."

Aqui, o autor não se limita a falar sobre esportes, mas do espírito humano, sugerindo que o futebol, mesmo nos bastidores comerciais, preserva sua essência por meio dos valores intangíveis que o conectam às pessoas. 

Janela aberta para o infinito

Nelson Rodrigues também é mestre em traduzir o peso emocional que paira sobre cada jogo decisivo. Para ele, o início de uma partida é uma metáfora para a vida: uma tela em branco onde tudo pode acontecer. A ansiedade, a esperança e o suspense são quase palpáveis. É como se cada apito inicial carregasse o destino dos torcedores e dos jogadores:

"O começo de qualquer partida é uma janela aberta para o infinito. Ao soar o apito inicial, todas as possibilidades passam a ser válidas."


Rodrigues pinta o cenário de um jogo como um drama teatral, onde heróis e vilões se enfrentam sob os olhos atentos da multidão. Ele entende que cada partida carrega o sonho de milhares de pessoas, refletindo a complexidade dos altos e baixos da vida.
Ao longo da obra, ele descreve como o futebol une e emociona pessoas, não importa se é num estádio lotado ou numa pelada de rua. A magia está na incerteza do que pode surgir, nos momentos inesperados que transformam o ordinário no extraordinário.

Os dramas da vida como ela é

Nelson Rodrigues era um verdadeiro cronista da alma. Nesta obra não seria diferente. Nela, jogadores, torcedores e cronistas transformam-se em personagens alçados a protagonistas de histórias repletas de emoção e humanidade, revelando também as frustrações e esperanças de quem vive intensamente o universo do futebol, brincando com as ironias da vida e nos arrancando até umas risadas.
Aqui temos o exemplo do cronista desesperado que, após um dia de desventuras familiares, busca refúgio no Maracanã, o que explicasse em partes as motivações dos cronistas que descontavam a raiva na hora de escrever, em cenas carregadas de humor e tragédia cotidiana.

"Lembro-me de certo cronista que num domingo foi desfeiteado pelo caçula, pela mulher e pela criada. Até o vira-latas da família rosnou contra ele. Quando o desgraçado saiu para o Maracanã, ventava fogo."

Para Rodrigues, o futebol é uma metáfora da existência, onde a glória e o fracasso convivem lado a lado. A vaia que ecoa no estádio é um lembrete da imprevisibilidade humana:

“No futebol, a apoteose está sempre a um milímetro da vaia.”

A Injustiça e o Esquecimento

Rodrigues também usa sua obra para lançar luz sobre as crueldades que o futebol, por vezes, reserva aos seus ídolos. Ele trata com profundidade a infâmia associada ao goleiro Barbosa, injustamente marcado como o grande culpado pela derrota na Copa de 1950. Para ele, essa postura não apenas apaga o esforço coletivo, mas perpetua a ingratidão:

"Um lapso do arqueiro pode significar um frango, um gol, e, numa palavra, a derrota. Vejam 50. Quando se fala em 50, ninguém pensa num colapso geral, numa pane coletiva. Não. O sujeito pensa em Barbosa, o sujeito descarrega em Barbosa a responsabilidade maciça, compacta da derrota."

Da mesma forma, ele lamenta o abandono e a falta de reconhecimento enfrentados por Garrincha, um dos maiores gênios do futebol:

"Vejam vocês como são as coisas. Garrincha vivia por aí, mais abandonado, mais desprezado do que um cachorro atropelado... Ai de nós, ai de nós. Temos uma piedade frívola e relapsa. Gostamos de esquecer."

Esses exemplos ilustram a maneira como o futebol, apesar de ser uma fonte de alegria, também reflete as desigualdades e as fragilidades das relações humanas.


Grande Resenha Facit

Além de narrar partidas e personagens, A Pátria de Chuteiras contextualiza a paixão pelo futebol no Brasil e suas manifestações culturais. Nelson Rodrigues faz referência ao programa A Grande Resenha Facit, uma mesa-redonda icônica dos anos 1960 que fervilhava com debates acalorados e apaixonados sobre os jogos do fim de semana.

A Grande Resenha Facit foi um marco na história da televisão esportiva no Brasil. Exibido entre 1963 e 1971, inicialmente pela TV Rio e, mais tarde, pela TV Globo, o programa se destacou como uma das primeiras mesas-redondas de futebol na TV brasileira. Rapidamente conquistou o público graças ao formato inovador, recheado de debates acalorados e pela paixão ardente dos comentaristas.

Detalhes do Programa

Período de Exibição: 1963 - 1971

Horário: Inicialmente às 21h30, depois transferido para as 23h30.

Periodicidade: aos domingos

Formato: Uma mesa-redonda que reunia comentaristas para debater as atuações e os desempenhos dos times cariocas, com foco especial nos jogos do Maracanã.

Comentadores e apresentadores

Comentaristas: Armando Nogueira, Nelson Rodrigues, João Saldanha, José Maria Scassa, Hans Henningsen (o “Marinheiro Sueco”), Vitorino Vieira e o ex-artilheiro Ademir.

Apresentador: Luiz Mendes

Frases marcantes, como a provocação de José Maria Scassa — “Quem não é torcedor do Flamengo, é contra o Flamengo” — refletem o tom inflamado e a paixão presente nas discussões.

Curiosidades

O programa inicialmente chamava-se “Grande Revista Esportiva”, mas recebeu o nome definitivo após conquistar o patrocínio da Facit, uma empresa de máquinas de escrever que se tornou sinônimo do programa.
Luiz Mendes, o apresentador, teve a ideia de criar o programa ao assistir a um debate político com Oliveira Bastos, Murilo Mello Filho e Villas-Boas Corrêa. Ele apresentou a proposta ao diretor da TV Rio, Walter Clark, sugerindo o mesmo formato, mas adaptado ao futebol de fim de semana — e assim nasceu uma lenda televisiva.
Era comum que os comentaristas defendessem seus times com veemência, tornando as discussões acaloradas e cheias de polêmicas.

Momentos memoráveis

Entre os episódios mais icônicos, destaca-se o momento em que Nelson Rodrigues, fiel defensor do Fluminense, afirmou que um pênalti marcado contra o clube estava errado — mesmo com o vídeo comprovando o contrário. Esse episódio reflete a essência do programa: paixão acima de tudo!

Legado

Nelson Rodrigues, com sua genialidade inconfundível, nos convida a enxergar o futebol como algo muito além de um jogo. Em A Pátria de Chuteiras, ele explora as camadas mais profundas desse esporte tão brasileiro, revelando como ele reflete nossa cultura, nossas paixões e nossos dramas humanos. Seja ao descrever a glória ou a tragédia, a apoteose ou a vaia, ele nos lembra que o futebol é uma metáfora viva da vida e da identidade nacional.
Ao lado disso, programas como A Grande Resenha Facit reforçam a importância cultural do futebol ao alimentar discussões e paixões que, década após década, consolidam o papel desse esporte como parte essencial da alma brasileira.

Saboreei esta obra da melhor forma possível e a recomendo para quem deseja saber como o futebol é tratado na literatura e ler obras onde ele seja o pano de fundo. Espero do fundo do coração que vocês tenham gostado desta viagem ao tempo. Se você ainda não conferiu as edições anteriores do Mary Recomenda, clique na tag e confira tudo que já rolou por aqui, quem sabe sua próxima leitura já esteja aqui te esperando. Por hoje é só, um abraço e até nosso próximo encontro, com ou sem bola no pé. ⚽


Referências

RODRIGUES, Nelson. A Pátria de Chuteiras. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

MEMÓRIA GLOBO. Grande Resenha Facit. Disponível em: <https://memoriaglobo.globo.com/esporte/telejornais-e-programas/grande-resenha-facit/noticia/grande-resenha-facit.ghtml>. Acesso em: 16 fev. 2025.

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