Pô, Pai | A epifania de André - parte 3

 


Que isolamento o quê! — ralha Comadre. — Eu sou da família, você não pode me impedir de entrar!

— Não é bem assim — objeta Augusto, já com a máscara cobrindo a parte inferior do rosto. — Inclusive, hoje à noite estou indo para o plantão. Os corredores dos hospitais estão vivendo um caos absoluto devido à falta de leitos, tenho visto gente morrendo diariamente e insisto que enquanto não temos esperança de vacinas, devemos fazer a nossa parte para não sermos os próximos.
Ah, isso aí é conversinha sensacionalista da RPN — desdenha Comadre, abanando as mãos, mesmo sem ser vista. — Estão inventando teorias da conspiração para apavorar todo mundo e quebrar a economia. Ouvi o Tino Cavalli dizer que muitas pessoas hospitalizadas morrem por outras causas e a RPN manda fraudar os atestados de óbito para aterrorizar as pessoas. Não ando de máscara, não quero e não tenho medo de uma gripezinha mixuruca.
— Pelo seu próprio bem, Comadre, volte para casa! — pede Marcela. — A gente não deve brincar se não tem disposição de arcar com as consequências das nossas brincadeiras.

💪💪💪

A porta de entrada da casa dos Prado Mendes é de madeira maciça, com detalhes em vidro decorativo que permite a entrada de luz natural. Um tapete de boas-vindas com a inscrição “bem-vindo” está colocado na entrada, cercado por vasos de plantas que adicionam um toque de verde ao ambiente.
— Não estou gostando dessa lavagem cerebral que andam fazendo em você — pontua a visitante indesejável.
Não é lavagem cerebral — defende-se Marcela.
— Por que você me bloqueou?

💪💪💪

Beto subiu as escadas correndo feito rato fujão porque ninguém merece as investidas da Comadre, porém André só está aguardando o desfecho da conversa dos pais com a criatura abjeta para chamá-los para o café, que, a propósito, ele próprio preparou.
Ele conversa com os seguidores:
— Gente, a tensão está a mil por aqui. A Comadre acabou de chegar e está praticamente querendo invadir a nossa casa. O Beto, que não é bobo nem nada, se mandou para o quarto. Como eu já contei várias vezes aqui no canal, as visitas da Comadre são chatas, ela é muito intrometida e cheia de se achar a dona da razão, principalmente depois que passou a ter político de estimação. Só estou aguardando a conversa dos meus pais com ela acabar para chamá-los para o café e fazer a revelação. — André respira fundo. — Estou nervoso, mas também ansioso para que tudo se resolva.
A cozinha está impecavelmente arrumada, com a mesa redonda posta para o café, com xícaras, pratos e talheres dispostos ordenadamente. O bolo, já decorado em tons pastel, está na geladeira, pronto para a grande revelação.
— Gostaram da minha mesa posta?

💪💪💪

— Marcela, abra essa porta! Precisamos conversar! — Comadre, vestida com uma roupa extravagante que combina estampas de onça e acessórios dourados, bate na porta com força e o estridente barulho das pulseiras balançando ressoa junto aos gritos dela. — Você me bloqueou e agora quero saber o porquê! 

💪💪💪

Marcela, com os lábios apertados, olha para Augusto. Ele pousa uma das mãos no ombro dela para sinalizar apoio.
—  Porque suas postagens na internet estão passando dos limites e eu não me sinto confortável com isso! — desabafa a mãe dos meninos.
— Não acredito nisso, Marcela! — esbraveja a Comadre. — Você precisa amadurecer, menina. Desfazer uma amizade de longas datas por conta de política é uma besteira!
— Desculpa, Comadre, mas discordo dos seus posicionamentos políticos.
— Que bobagem, mulher. Abra essa porta e pare de conversa fiada.
— Além disso — prossegue Marcela, firme —, já estou cansada de ficar quieta. Não gosto do jeito que você trata o Augusto e os meninos, muito menos que venha nos visitar sem nem avisar antes. Você é minha madrinha, não minha dona.
— Agora que seus pais já estão mortos, eu sou a voz da razão nessa família!
— Você disse tudo, Comadre. Meus pais já estão mortos e eu devia satisfações a eles somente, mas a você, não. Desculpa a franqueza, mas eu não quero vê-la.
— Ficarei plantada aqui o tempo que for, até você abrir essa porta para eu colocar um pouco de juízo na sua cabeça.
— Comadre, por favor, ouça a Marcela. Ela não quer te atender agora! — Augusto toma a palavra.
Depois de alguns minutos de discussão, a Comadre finalmente se retira, bufando de raiva e resmungando sobre ingratidão e desconsideração.
— Isso não vai ficar assim! — grita a Comadre enquanto se afasta.
Marcela e Augusto trocam olhares de alívio enquanto a porta se fecha.
— Finalmente, um pouco de paz — diz Marcela, exasperada.
— Você fez o certo, amor — conforta Augusto, abraçando a amada e afastando-se para segurar cuidadosamente o rosto dela. — Estou surpreso com a sua firmeza. Você conseguiu ser assertiva e manter a elegância.
Ela torna a abraçá-lo e encosta o queixo nos ombros dele:
— Não sei se fiz bem…
— Triste eu fico de ver o seu estado depois das visitas dela.
— É que ela é da família, sabe…
— Não significa que só porque ela seja sua madrinha que possa vir aqui te humilhar por tabela, como se você fosse um capacho. Você foi ótima e eu tenho orgulho de você.
Com a saída da Comadre, André aproveita o momento para chamar todos para a cozinha.

— Pai, mãe, podem vir aqui um momento? — chama André, tentando esconder a ansiedade. Tudo está sendo filmado.
— Claro, filho, estamos indo — responde Marcela, segurando a mão de Augusto enquanto caminham até a cozinha.
A cozinha está iluminada pela luz suave das luminárias, criando um ambiente acolhedor. A mesa está pronta e o bolo, a peça central, está no lugar de destaque. André respira fundo, sentindo o peso do momento. Ele sabe que está prestes a fazer uma revelação importante, mas o amor e o apoio de sua família lhe dão forças.
— Preparei esse café da tarde especial com muito carinho porque tenho algo muito importante para contar a vocês. — André segura o bolo com cuidado e coloca-o na mesa, revelando a inscrição “EU SOU GAY”.
Marcela e Augusto olham para o bolo e depois para André, seus rostos passando de surpresa para compreensão. Beto, vestindo uma camiseta do Bob Esponja e uma bermuda preta com bolsos laterais, se aproxima da mesa, lê o que está escrito na cobertura e cai na risada, mas leva bronca do irmão:
— Sem provocações, Beto. O assunto aqui é muito sério! — André está chorando muito. Aqueles segundos intermináveis sem nenhuma manifestação dos pais consome-o internamente.
Beto se senta, dando de ombros. Sempre desconfiou do segredo do irmão, porém nunca se aprofundou no assunto porque a iniciativa deveria partir do próprio André.
— Mas que cara de choro é essa, rapaz? — questiona Augusto.
— Preciso contar uma coisa para vocês… — diz André, com a voz embargada. — É isso mesmo que está escrito no bolo!
André coloca o prato de bolo na bancada onde estão os pais e aguarda em silêncio a reação deles. Quem está assistindo pode até crer que Augusto ficará furioso ou dirá coisas agressivas. No lugar disso, contudo, nosso querido cardiologista tem uma crise de riso, não demonstra choque, espanto, surpresa ou mesmo desgosto e pesar, como muitos progenitores por aí.
— Eu queria saber de uma novidade! — Beto é o primeiro a quebrar o silêncio. — Você nunca convenceu como hétero, André…
— É só isso que você queria nos dizer, filho? — pergunta Augusto, mais manso e olhando para os olhos chorosos e inchados do filho mais novo.
André meneia a cabeça, já sem forças. Augusto levanta as mãos, como que celebrando o fato de André confiar nos progenitores e parar de mentir a si próprio.
— Até que enfim!
— Co… como assim, pai? — André se espanta porque temia uma rejeição da parte do pai, posto que Beto e Nina estão juntos há muitos anos, apesar dos altos e baixos.
— Pai sabe. —  declara Augusto, sereno, inclusive fatiando o primeiro pedaço para entregar a André, pois sair do armário, não importa a sua idade, a sua orientação sexual, seu gênero, é um ato de coragem e poder contar com a família te fortalece, você sabe que não está só e as pessoas que mais te amam não vão deixar de te amar.
— Eu sempre soube, pô! — comenta Beto. — É novidade para você, mas para mim, não.
— Pai sempre sabe.
— No caso do André, qualquer um sabe.
André dá uma encarada no irmão, porém todos os sinais foram dados. Augusto e Marcela sempre perceberam que o filho mais novo vivia cercado de meninas, adorava dançar no meio delas, tinha (tem) uma preocupação excessiva com a aparência e nunca ninguém conheceu suas “namoradas” porque ou elas morriam, ou moravam muito longe.
Beto nunca se importou com a orientação sexual do irmão, apesar de ter aquela pontinha de desconfiança da veracidade dessas namoradas que nunca tiveram face. Por outro lado, André agora pode levar uma vida mais plena, a família o apoia e para quem está saindo do armário, é um diferencial: o acolhimento das pessoas que mais importam no mundo.
— E você, mãe? Eu te decepcionei muito?
Marcela se levanta para abraçar o filho e lança um olhar para que Augusto e Beto também abracem André.
— Você sabe, Andrezinho, que a mamãe ama você, sempre vai te amar, nada muda. O papai também te ama, o Betinho também te ama e todo mundo aqui tem muito orgulho de você.
Os Prado Mendes se abraçam e choram juntos.


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