Parte 5 | O que o programa do Tino não mostra
Enquanto a família Prado Mendes começa a encontrar um pouco de paz, uma nova tempestade se forma em outra parte da cidade. O dia se inicia como qualquer outro para Comadre, que segue sua rotina normal de todas as manhãs e por volta das 11h liga a televisão para acompanhar a reprise de um programa matutino, para esperar o jornal de Tino Cavalli começar.
De repente, a imagem na tela muda para Tino Cavalli, que aparece no estúdio do jornal dele com um semblante carregado de expectativa.
— Bom dia, tudo bem? São 11h30 e falta pouquinho para o nosso encontro. Estou preparando a edição de hoje, que promete revelações bombásticas, bom-bás-ti-cas! Policiais militares salvam o dia em Balneário dos Anjos. Confira em primeira mão todos os detalhes dessa ação e muito mais daqui a pouco, só comigo — diz Tino, com um sorriso enigmático.
Comadre sente o coração disparar. Ela olha para João Augusto, que sorri sem muita convicção.
— Meu querido, você vai aparecer no programa do Tino hoje?
Ele ajeita o quepe na cabeça.
— Lembra daquela história que contei mais cedo? Tinha um noia de bobeira na rua e a gente se aproximou, mas ele fugiu correndo e a gente suspeitou e abordou; ele insistiu em dizer que era inocente e não quis ser revistado, daí eu e os meus parças tivemos que agir.
— E aí? — pergunta Comadre, com a voz falhando.
— A gente encontrou entorpecentes e o noiado insistindo que era inocente, tudo que eu e os parças fizemos foi dar um susto no vagabundo. Avisamos ele que da próxima vez não teria colher de chá!
— Tem certeza de que isso aí não vai dar ruim?
— Mãe, calma… não é nada de mais… só tive que escolher entre você e a mãe do vagabundo. Que chorasse ela! — responde João Augusto, tentando soar convincente, mas sem sucesso. — Vou aparecer noutra reportagem onde dei uma lição nuns pinguços por desacatar autoridade.
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Como é de se esperar de Tino Cavalli, ele deixa para esmiuçar o caso polêmico na metade do programa.
Quando finalmente chega o momento esperado, Tino Cavalli detalha o escândalo, mas a abordagem, além de ser tendenciosa e antiética, também favorece os policiais envolvidos na agressão.
Ele próprio, inclusive, desabafa:
— Essa história aí está muito mal contada — grita Tino. — Os policiais só abordam e utilizam a força quando necessário. E esse noiado, o que estava fazendo? Por que saiu correndo? Sai correndo quem tem culpa no cartório, meu pai, minha mãe de família. O cidadão de bem foge da polícia, por acaso? Foge correndo quem está fazendo o que não presta!
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Comadre se levanta do sofá para aplaudir a fala de Tino:
— É isso aí, meu menino! Tino para presidente em 2026, o Brasil precisa de você! Meu voto já é seu!
João Augusto, contudo, não demonstra tranquilidade alguma.
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— Vocês, PMs, têm espaço aqui. Eu, Tino Cavalli, não hesito em abrir esse espaço para vocês se pronunciarem, se manifestarem, contarem a verdade ao nosso público já cansado dessas lambanças da RPN.
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Enquanto isso, na casa dos Prado Mendes
A família Prado Mendes acompanha o noticiário da RPN, que mostra imagens das ações covardes dos policiais.
— Que horror! — Marcela cobre o rosto com as mãos. — Para, para! Eu não quero ver isso, é muita maldade!
— Luan Reginaldo de Oliveira, de 15 anos, havia saído de casa para levar o lixo e dar uma volta na praça — narra a repórter —, foi encaminhado à Santa Casa de Balneário dos Anjos em estado grave…
— Deus queira que eu esteja errada, mas o João Augusto, filho da Comadre, tem cara de estar envolvido nisso — Marcela reflete. — A Comadre sempre se gaba das proezas do filho e eu fico estarrecida com tanta barbaridade contada com tanta frieza.
— Esses são exceções — contorna Augusto. — Esses nem deveriam vestir a farda e representar a corporação, deveriam ser exonerados e dar espaço para pessoas que queiram proteger a população e mantê-la segura.
— Eu fico pistola com esse tipo de reportagem porque parece que ninguém age, pô! Um piá de 15 anos dando uma voltinha na praça de máscara e fone de ouvido lá é motivo para esses brutamontes caírem de pau em cima dele? — Beto está profundamente irritado e revoltado. — Não dá para olhar para isso tudo e ir achando normal, que não dá em nada… a gente tem que parar de só olhar e tomar alguma atitude. Ficar quieto, amedrontado e não falar nada empodera esses canalhas.
— Isso não vai dar em nada. Todo mundo sabe que a mídia fala de casos assim por uns dias e tudo cai no esquecimento depois de um tempo — lamenta André.
— Você não deixa de ter razão, filho — arremata Augusto. — A gente convive tanto com a impunidade que parece ter desenvolvido uma tolerância com o intolerável. A comoção dura alguns dias, talvez semanas, mas cai no esquecimento e já não interessa mais. Esse tipo de postura favorece os velhacos e os canalhas que se escoram no “jeitinho brasileiro” e o levam até às últimas consequências.
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Beto e André, navegando nas redes, descobrem que o jovem espancado é menor de idade e mora com os avós. Eles entram em contato com a família dele e decidem criar um abaixo-assinado para que os PMs envolvidos nessa barbárie sejam investigados, punidos e afastados da corporação.
Os irmãos estão na cozinha. Beto prepara um achocolatado com mais chocolate do que leite e André está sentado à mesa mexendo no laptop.
— Eu não queria transformar meu canal na sucursal da TVTV, mas também não quero fingir que não estou comovido!
— Você pode comentar o assunto bem rapidinho e colocar um QR code para os seus seguidores assinarem — propõe Beto.
— Você acha que alguém vai assinar?
— Até o momento, cem pessoas já assinaram!
— E se não der em nada?
— A gente continua tentando. A justiça precisa ser feita — responde Beto, esperançoso.
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O estúdio do Vinte Horas é um espaço moderno e bem iluminado, com grandes telas de LED exibindo gráficos e manchetes em tempo real. O cenário é dominado por tons de azul e branco, conferindo um ar de seriedade e profissionalismo. Cecília Paternostro e Eduardo Meirelles estão sentados atrás de uma bancada elegante, equipada com microfones e laptops. O logotipo da RPN é destacado ao fundo, com um relógio digital que marca o horário exato.
— Abaixo-assinado exigindo justiça para o menino Luan alcança a marca de quinhentas mil assinaturas em menos de 24 horas — Ceci noticia.
— Luan, entretanto, segue internado, sem previsão de alta. Seu estado de saúde, segundo o boletim médico divulgado mais cedo, continua crítico — complementa Edu Meirelles.
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