Simplesmente Tita — 10º Capítulo

 
10º Capítulo

Maria Clara demorou bastante para me receber. Hugo e Natasha eram receptivos e faziam das tampinhas de refrigerante um time de futebol de botão. Caixa de papelão era caminhão, chinelo fazia às vezes da trave, lasca de tijolo era giz e o murinho rebocado que separava uma casinha da outra era lousa das crianças desafortunadas de amor. 
Se Rubão tivesse vindo nos visitar, viria com carros da polícia e do conselho tutelar no encalço. Mamãe seria detida por violência doméstica, alienação parental e perderia minha tutela; Margarida e Josué responderiam a uma infinidade de crimes e nós crianças ficaríamos longe de nossos monstros. Aquela carta era a nossa última salvação, efetivamente.
Fosse a participação em um programa ou não, a libertação haveria de chegar, custasse o que custasse, passasse o tempo que fosse. Esperaríamos pelos dias em que não precisaríamos chorar por sermos fracas demais perante adultos que escarravam em nossa honra.
— O Josafá ia auxiliar a gente a colocar a carta no correio, daí a Tânia viu a carta e aí só porque eu não quis mostrar, ela chamou a mamãe e o Josué e disse que me viu com namorado — Clarinha varria o chão da cozinha, Natasha recolhia o lixo e até o pequeno Hugo arrumava a cama do beliche, enquanto Tânia ficava deitada na rede fazendo nada. — A Tânia leu tudo e o Josué picou a carta em mil pedaços, Tita. Virei motivo de piadinha daquele velho escroto, mas aquela cobra há de me pagar.
— Sinto muito, muito mesmo. Podemos escrever outra carta, se você quiser, mas tomar mais cuidado para que certas cobras não peguem.
Clarinha desconversou e não entrou em detalhes sobre o que aconteceu entre ela e Josué, mas os anos trataram de entender a metáfora que ficou no ar. E a vontade de escrever cessou. O silêncio custava os doces que caíam com um amargo gosto de inocência perdida, de um contraditório conformismo que ia contra a teimosia de quem queria mais do que viver oprimida em um pedaço de mundo.
— Sabe, Tita, quero que você me conte como é a 5ª série, se tem muita matéria difícil, se as pessoas são legais, se é verdade que você vai ter mais professores em vez de só um.
— Vou te contar tudinho, tudinho.
— Quando você vier aqui da próxima vez, as aulas já terão começado e as minhas também.
— No próximo ano, você vai sentir isso também.
— Não sei. A quarta série é bem difícil. Já reprovei a segunda, que nem era tanto.

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Música: Fly - Sugar Ray.

Josué desapareceu. Repentinamente. Assunto proibido para crianças, mas juro por Deus que vi no programa do saudoso Geraldo Bráulio um homem parecidíssimo fisicamente com ele ser detido em flagrante após matar um homem em um bar. Levei um susto que arrepiou a espinha. 
Era ele, sem sombra de dúvida. 
A perversão no olhar. O sorriso maroto e banguela. Não podia ser coincidência. Ainda que Rubão nunca tenha lido nossa carta, papai do céu nos mostrou que, sim, não havia mal que perdurasse.

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Em função do “sumiço” de Josué, Tânia e Josafá foram morar com uma tia, enquanto vó Olívia ficou responsável pelos filhos de Margarida e a tia foi para Morretes se amigar com um traficante da região, sem um pingo de remorso pelo ocorrido. Não derramou uma lágrima, não lamentou pela vulnerabilidade dos filhos. Não pensou em ninguém além de si, não priorizou nada além do próprio hedonismo. Meire não era a dona da razão, sabia a irmã que tinha, entretanto, Clarinha não poderia pagar pelos erros da mãe nem de ninguém.
Olívia Ribeiro das Neves era o porto-seguro dos pequenos e não hesitou em abrir as portas de sua humilde residência para abrigar os netinhos, tratou de ser linha dura, para que não se perdessem, a exemplo de Margarida. A abordagem envolvia especialmente Maria Clara, a mais velha, a quem depositava muitas expectativas de uma regeneração. Faria a garotinha gostar de estudar. Ser o que a mãe não foi. Ser alguém. Uma mulher de valor. 
Em sua limitação financeira, não permitiria que faltasse nada, o que quer que fosse. Natasha entrou na 1ª série e Hugo conseguiu uma sofrida vaga na creche. Vovó madrugou na fila para matricular o menininho. O município forneceria três refeições, uniforme e o que mais necessitasse, em turno integral, de segunda a sexta. Seria ótimo que Hugo convivesse e brincasse com outras crianças e desenhasse cores para a sua vida. Idêntica sorte, Clarinha não teve, porém, nunca era tarde para recomeçar. 
Naquela casa, ninguém ficaria no ócio. Responsabilidades cumpridas com todo o rigor. Era o amor da vovó manifestando-se. Preocupação com o futuro, em moldar cidadãos de bom caráter. Seja lá qual fosse a “maldição”, acabava naquela geração. 
Meire torceu o nariz, ironizando a iniciativa da progenitora por acreditar que os sobrinhos não mereciam uma segunda chance.
Vó Olívia era técnica em enfermagem e trabalhava em plantões de 12 horas, folgando por 24 horas. Nos dias em que estava em casa, passava boa parte do tempo na cozinha preparando bolos, salgados e geladinhos para levantar uma renda extra. Na Santa Casa onde trabalhava, os quitutes faziam sucesso. As crianças da rua também pediam bis.
Nenhum homem para olhar diferente para Clarinha e Natasha, nenhum assassino de cachorros, nenhuma garrafa quebrada. Tão bom ver minha prima calma, cantando, sendo a criança que deveria ser. 
1998 ainda estava no comecinho e a palavra-chave daquele ano era a transformação a qual eu também conheceria. Um desafio me aguardava. O maior de todos. Igual a antes, nunca mais. Nem se quisesse, se houvesse a mais fiel das reproduções. Nada poderia ser o que foi. Ninguém faria igual.

2 comentários:

  1. Profª Daniela bem que poderia adotar a Tita ! A Meire é muito chata, dá muito ódio dela sempre que ela diz essas coisas pra Tita.

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    1. A Profª Daniela parece mais mãe da Tita do que a Meire... A Meire é uma amarga, azeda, só sabe criticar tudo e todos... mas não olha para ver que ela também tem defeitos...

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