Simplesmente Tita — 2º Capítulo



2º Capítulo

Duas garotas novas entraram na nossa classe no ano seguinte e não foram bem recebidas pelo quarteto de Cássia Reis. Eram elas Elza e Eliza, duas irmãs que residiam no educandário, situado ao lado do colégio. Poderiam se passar por gêmeas, tamanha a similitude física de ambas. Possuíam a mesma estatura, o mesmo tom de pele retinto, os olhos castanhos e oblíquos, narizes batatudos, lábios grossos e sobrancelhas ralas, os cabelos crespos, longos e castanhos viviam presos. O detalhe que diferenciava uma da outra eram os dentes superiores separados da segunda.

Elza tinha 10 anos e Eliza era um ano e meio mais nova. Ambas estavam um pouco atrasadas em relação aos demais e apresentavam algumas dificuldades para acompanhar as aulas. Para piorar, Dulce as ridicularizava diante das outras crianças, autorizando-as a reproduzir aquele comportamento lamentável.

Em um primeiro momento, fui esquecida, pois Cássia e as amigas vinham intimidando Eliza, que gaguejava bastante ao ler em voz alta e se saía muito mal nas provinhas. No entanto, tripudiar de mim era chutar cachorro morto, mas o buraco era bem mais embaixo: a nova aluna tinha quem a defendesse. Elza era doce e meiga, mas quando entrava numa briga, pagava para não sair.

Cássia Reis e as outras crianças me encurralaram e agrediram porque tinham a impunidade assegurada, todavia, para quem apanhava da vida desde antes de nascer, enfrentar uma ruivinha metida a besta era fichinha. Que Elza era magrela, era, porém, deu uma prensa na abelha-rainha do segundo ano e, embora tenha se encrencado com a Diretora Norma, impôs certa autoridade, afinal de contas, ninguém queria ser a próxima vítima.

A situação não havia mudado nada de um ano para o outro. Os recreios continuavam sendo solitários, isso quando o povo da minha sala não arranjava uma nova maldade contra mim. 

Se o que era ruim poderia piorar, piorou, posto que vivíamos uma recessão financeira em casa. Eu amava quando Meire separava uma dúzia de bolachas de maisena para mim. O quarteto de Cássia zombava muito disso, inclusive Bruna chegou a me pedir uma, tudo para ridicularizar e me chamar de favelada miserável; elas só comiam bolacha recheada.

Elza e Eliza esperavam o cardápio do dia, pois a escola fornecia merenda no intervalo. Arroz-doce, sagu, risoto, macarrão com vina¹ (aqui em Curitiba falamos vina), sopa de feijões, naqueles pratinhos de plástico azuis da Fundepar ². Elas comiam tudo com gosto, às vezes até repetiam, levando advertência da "tia" da cantina.

Foi num dia em que levei um pito por repetir um prato de risoto que Elza e Eliza intervieram. Na verdade, Elza. Ela era mais destemida. A irmã, acanhada.

— E se ela estiver com fome, hein? Não pode comer? — Ralhou Elza, pegando um prato de risoto só de pirraça. — Se eu estiver com fome e quiser comer, eu vou comer e não é você que vai me olhar com cara de fome. Você não é dona da comida!

— Menina mal-educada! — Retrucou a mulher, afundando a concha na panela de risoto e nos servindo com truculência.

— Com você, tenho prazer em ser mal-educada! — Devolveu Elza, a justiceira. Senti-me tão envergonhada com a reprimenda da merendeira que deixei o pratinho azul no balcão e sentei-me na calçada de paralelepípedos, encostada a uma parede, com os olhos se enchendo de água.

— Ô menina! — chamou Elza, que deve ter corrido muito para alcançar-me.

Não levantei a cabeça. Estava abraçando os joelhos, cabisbaixa, respirando fundo para não chorar mais uma vez. Quase todo dia, eu tinha motivos para chorar.

— Cê esqueceu o seu prato. — avisou a minha coleguinha. — Eu… perdi a fome…

Elza insistiu:

— Está tão gostoso.

Ela entregou-me o pratinho azul com o garfo e sentou-se ao meu lado.

— Você está chorando?

Sempre fui péssima na arte de disfarçar.

Se minha vida fosse retratada numa telenovela separada por temporadas, eu seria aquela menininha encostada no muro verde-bandeira do colégio, chorando com a trilha instrumental de tristeza toda vez que a Prof.ª Dulce me maltratava e a turma de Cássia me pregava uma peça.

Elza fez um carinho no meu cabelo.

— Não chora!

— A gente gosta de você! — disse Eliza. As irmãs do educandário me fizeram companhia e eu esvaziei o prato.

— Por que você anda sempre sozinha? — Perguntou Eliza.

— Porque ninguém fala comigo. — Respondi quando o sinal soou e nós três fomos levar os pratos vazios até a cantina.

— Agora tem quem fale com você! — Elza estendeu-me a mão e eu correspondi.

As irmãs sorriram e nós três chegamos de mãos dadas até a fila da segunda série.


♏♏♏


Cássia Reis e as amiguinhas começaram a receber cartinhas de admiradores e a falar de “namoradinhos”, tornando insuportável o que já era ruim porque a Bruna era a crush dos meninos, logo, quando encontrei um bilhetinho para mim em cima da carteira, fiquei lisonjeada: Erick do Carmo havia escrito que eu era a mais linda.

Não demorou muito para que Cássia Reis e as amiguinhas se aproximassem de mim para saber mais sobre o tal bilhetinho e eu, ingênua, contei-lhes tudo.

— Por que você não manda um bilhetinho para o Erick também? — propôs Bruna.

— Nem sei o que escrever para ele!

— A gente te ajuda! — Cássia deu o assunto por encerrado.

As cartinhas prosseguiram por mais alguns dias, quando experimentei uma trégua do quarteto. Tudo ia bem até Elza e Eliza me chamarem para uma conversinha.

— Acorda para a vida, Tita! — Elza aconselhou-me. — Essas minas não gostam de você, estão é tirando com a sua cara!

— Elas são amigas do Erick.

— Essas minas odeiam você e o Erick nem sabe de nada! — desabafou Eliza.

— Ele não sabe?

— Ele é namorado da Camila.

— Que brincadeira mais sem graça, viu? — murmurei.


♏♏♏


Uma curiosidade me inquietava: o motivo de Elza e Eliza viverem no educandário. Faltava-me coragem para perguntar, no entanto, a ocasião perfeita chegou e eu não a desperdicei. A primogênita explicou-me:

— Nossa mãe morreu um pouco depois que a Eliza nasceu.

— E o pai de vocês? Vocês têm um pai, não têm? — Perguntei, dividindo minhas bolachas de maisena com elas. Como eu levava dez, dava cinco para cada uma. Elas deviam sentir muito mais fome do que eu.

— A gente não tem pai; por isso, mora lá no educandário.

— De qualquer jeito, vocês têm um pai, não têm? Ele nunca procurou por vocês?

— A gente não tem família. — Concluiu Eliza.

— Nem pai, nem vô, nem vó, algum tio, ninguém?

— Ninguém! — Elza olhou para baixo, meio pensativa, meio distante.

— Minha família é a Elza e, se alguém quiser me adotar, tem que adotar a Elza também ou eu não vou. Sem a Elza, eu não fico.

— Ela ainda sonha que vai ser adotada. — Desabafou Elza, mais realista, bastante consciente para uma garotinha de dez anos.

— Quem vem adotar quer bebezinho loiro de olho azul. Criança grande, não. No máximo uns 5 ou 6 anos, depois já está velha!

— Isso é muito cruel!

— A Eliza ainda sonha que vai aparecer algum casal querendo duas meninas que nem a gente.

— Mas acho que ela faz o certo, Elza. Ela tem que sonhar e acreditar. Vocês têm que acreditar que tem alguém que gostaria muito de cuidar de vocês.

— Acho difícil… — suspirou Elza.

— Numa dessas, de tanto ela rezar, Jesus mande pessoas boas que queiram cuidar de vocês. Tudo que você pedir para Jesus com o coração aberto, acontece. Eu não sei quando nem como, mas acontece…

— Depois que a gente diz que ela é um anjo, ela não acredita!


1 vina – salsicha no dialeto curitibano.

2 Fundepar – A Fundação Educacional do Estado do Paraná – FUNDEPAR foi instituída em 1962 com a finalidade de construir prédios escolares para instituições públicas, fornecer equipamentos para as salas de aula e distribuir a alimentação escolar. Na época, pela Lei Nº 4.599/62, a entidade, sem fins lucrativos, administrava o Fundo Estadual de Ensino. 

2 comentários:

  1. Muito legal a história da Tita e da Maria Clara. Parece que uma tem a outra no mundo,apenas. ..

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    1. Pelo fato de a Tita e a Maria Clara serem rejeitadas pela mãe, a dor as une. Não perca o capítulo de hoje, pois a Clarinha também participa dele. *-*

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