4º Capítulo
Não era indiferente a papai que eu nunca convidava nenhuma amiguinha para passar o fim de semana comigo ou vice-versa, nunca era chamada para festinhas, tampouco tinha “namoradinhos”.
— Você é uma menina tão legal, Tita. — Disse papai. Estávamos caminhando de mãos dadas pelo Parque Barigui, admirando a paisagem. — Logo você vai fazer outras amiguinhas.
— Tomara!
— Mesmo assim, te sinto tão tristinha, princesa. Parece-me que você não gosta mesmo da escola.
Temerosa de que ele relatasse a Meire de novo e eu apanhasse por “blasfemar”, não contei que, se pudesse, nunca mais queria pisar naquele lugar.
— Alguma menina faz maldade para você?
A ausência de resposta pode ser a mais esclarecedora de todas.
— Fazem maldades com você, princesa?
Félix parou de caminhar, ajoelhou-se para me fitar e segurou meu ombro, exigindo que eu o respondesse.
— As outras crianças fazem maldades para você, princesa? Não minta para o papai!
— Elas não gostam de mim. — admiti, relutante, pois não queria que aquilo fosse verdade.
— Por quê?
— Bom, eu não tenho uma lancheira rosa… e todas as outras meninas têm… e eu acho que deve ser por isso que elas não gostam de mim!
— Elas não gostam de você por causa disso? É um motivo muito bobo, não acha?
— Não é bobo! Todas as meninas têm tudo rosa, menos eu.
Elza e Eliza usavam o material escolar fornecido pelo governo, pastas plásticas encardidas e viviam de doações. Lancheira rosa, mochila de rodinhas, conjunto de lápis de cor com 48 cores (ou mesmo 24) eram utopias para quem residia em um educandário que comportava crianças e jovens em situação de abrigo.
— Talvez a Cássia parasse de me xingar se eu tivesse uma lancheira rosa.
— Quem é Cássia?
— Uma menina aí…
Félix ficou pensativo por alguns instantes.
— Estuda na sua sala?
Fiz que sim com a cabeça.
— Bom... ela fala coisas feias para mim...
— Que tipo de coisas?
Dei de ombros, encabulada, não queria que ele visse meus olhos marejando.
— Coisas feias... do tipo... que sou feia, burra, favelada. Ela não gosta de mim porque eu não tenho nada rosa, só pode ser isso.
— A Meire sabe que essa Cássia te xinga?
Fiz que não com a cabeça.
— E a sua professora? Ela não pede para a Cássia parar de te xingar?
— A professora não gosta de mim.
— Ora, mas Meire me disse que você é a melhor aluna da turma.
— Minha professora diz que sou uma menina muito má, problemática e intragável, pai. É verdade? Sou uma menina muito má?
Ele se agachou de novo, como se não acreditasse em tudo que lhe dissesse. Seus olhos castanho-esverdeados externavam consternação.
— Nunca pense uma coisa dessas, princesa. Você é uma menina muito doce, amável e especial, você é muito especial para o papai, sabe disso, não sabe?
Félix me abraçou tão forte que me senti aquecida, como se estivesse repousando numa nuvem de algodão.
♏♏♏
A fim de me alegrar, papai me presenteou com uma lancheira cor-de-rosa simples, sem o decalque de nenhum personagem e Meire, por sua vez, criticou a atitude de Félix, argumentando que ele me corrompia ao atender supostamente a todos os meus caprichos.
— Conheço uma solução eficaz para os problemas de menina mimada: porrada. Comigo, foi assim. Levei bastante porrada quando era criança, me endireitei e não tenho trauma nenhum.
— Que maldade, Meire! Ela é só uma criança! — Félix me defendeu. — Não é usando a violência que os problemas desaparecem, é com o diálogo.
— Não interfira no meu método de educar a Renata. Não tente me ensinar como criar a minha própria filha.
— Pelo menos posso presentear a minha filha com uma lancheira? — Félix interveio.
— Você é que sabe, já que acha que sua tarefa de pai é só pegar minha filha a cada 15 dias, levá-la para sua casa, fazê-la se empanturrar de porcarias e viver no mundinho do faz-de-conta, mas sou eu que fico com a parte mais difícil. Assim, até eu iria querer ser pai.
— Se você não quer que eu interfira no seu método de criação, não interfira no meu. E, sim, eu darei tudo do bom e do melhor para a minha filha, goste você ou não… porque ela também é minha filha. Você não pode mudar isso.
♏♏♏
Estreei a lancheira com um bolinho com recheio de doce-de-leite, uma embalagem de achocolatado com canudinho e o coração quase não cabia no peito quando Cássia Reis me cumprimentou na hora da entrada.
— Uau, que lancheira linda! — Exclamou a garota, escandalosa que só.
— Gostou? Foi meu pai que comprou!
— Gostei! — disse Cássia, balançando a cabeça.
As outras amigas de Cássia me rodearam.
— Que lancheira mais linda! — Bruna olhava para a lancheira de um jeito estranho e até acrescentou: — Sua lancheira é tão linda que vou pedir uma igualzinha para a minha mãe!
— E aí? Quer lanchar com a gente no recreio?
— Sério? — Perguntei, impressionada.
— É claro que é sério! — Insistiu Cássia.
— Mas vocês não gostam de mim?
— Quem disse isso?
— Vocês sempre pegam no meu pé.
— A partir de hoje, não mais. A gente até que gosta de você, Tita. Você é que se isola da gente.
— Vocês nunca me convidaram para lanchar com vocês antes.
— Agora a gente está convidando e não vale dizer que não.
— Se for assim, então eu aceito.
Quando o sinal para o recreio soou, tirei a lancheira de debaixo da carteira, alisei-a com carinho e senti-me feliz como nunca havia acontecido desde que entrei na escola. Procurei pelas meninas no local onde Cássia estendeu a toalha da Barbie e todas compartilhavam suas gostosuras.
Quando acenei, deveria ter notado que havia algo de errado, pois as amigas de Cássia estavam disfarçadas e a ruiva se fazia de desentendida, como se horas antes não tivesse me convidado para passar o recreio ali.
— Oie! — Fiz questão de mostrar a lancheira, a fim de mostrar que era uma delas, que queria viver em paz.
— Que bom que você veio! — Cássia se levantou e indicou onde eu deveria me sentar.
Apoiei a lancheira em cima da toalha, um pouco ansiosa para abrir, me perguntando sobre o que deveria falar ou se era melhor que elas puxassem conversa. As meninas se levantaram e eu fiz o mesmo, mas Cássia impediu-me com um gesto.
— A gente já volta. Fica aí, tá? — Pediu Cássia Reis, acompanhada pelas demais asseclas.
Sentada sob a toalha com a lancheira cor-de-rosa no colo, aguardei as meninas, julgando que tivessem ido ao banheiro ou coisa assim, entretanto a professora Dulce chegou um tempo depois e me levou aos puxões de orelha até a coordenação. Cássia Reis, chorando, acusou-me diante dos adultos de ter tentado furtar a toalha de piquenique dela. Tomei uma advertência.
Ao sair do gabinete da coordenadora e voltar para o pátio, uma das amigas de Cássia pediu-me um pedaço do bolinho recheado e eu dividi o lanche em duas partes, a fim de sacramentar uma trégua. No entanto, fui surpreendida por um empurrão.
Uma, duas, três crianças.
Tudo ficou embaçado e, quando dei por mim, estava caída na calçada e atordoada por conta dos empurrões, chutes e tapas que levei. Antes fosse só o quarteto do mal. Tinha criança mais velha participando daquela selvageria. A pele ardia, o cabelo estava todo arrepiado e eu me apoiei num degrau de concreto com muita dificuldade. Não havia um único adulto por perto. O bolinho e o achocolatado foram pisoteados.
As amigas da abelha-rainha jogavam a lancheira de uma para a outra quando eu lhes pedia para me devolverem. Cássia pulou repetidas vezes em cima do objeto até que este se quebrasse e jogou-o na minha direção.
— Toma a sua lancheira, favelada!
Pelo menos o imundo do Josué teve um fim \õ/
ResponderExcluirNão iria deixar o Josué triunfar... \0/
Excluir