Simplesmente Tita — 20º Capítulo



20º Capítulo

Apesar dos pesares, a Semana Recreativa atenuava a tristeza. Entre risadas, cachorros-quentes e balas, curtia minha felicidade. Agora, mais ainda. Minha plenitude iria acabar dentro de semanas. Como a novela. Um dia ela está estreando, você assiste pensando que não irá se envolver, sendo que no final da história está chorando. Pelo menos comigo é assim.

No show de talentos nós meninas dançamos Beijo é bom – Sandy & Junior, mas quem roubou a cena foi o Vando, que com muito bom humor deu vida ao Robocop Gay e nos levou às gargalhadas. Como dançarino era um ótimo professor. Foi praticamente impossível ficar parado. Roni e seus amigos deram vida ao pagode com Brincadeira de criança do Grupo Molejo.

Só porque Roni me viu de sapatinho preto com fivela, vestido florido e cabelo solto, veio querer paquerar. Até se ofereceu para segurar minha mochila.

-Uma dama como você não pode carregar todo esse peso.
-Já estou acostumada.
-Hoje não. – apanhou minha mochila – Serei seu servo.

As meninas, atrás, não conseguiam parar de rir.

-Sabia que você é a garota mais linda de toda a escola?

A piscadela. Aproximou-se de mim e jogou um beijo.

-Guarda na tua boca.

Me esquivei.

-Qual é, Roni? Sai pra lá.
-Isso mesmo, Roni. Deixa a Tita em paz. – Aline ordenou.

Recuperei minha mochila.

-Quando quiser, gatinha, é só me procurar.

A equipe verde venceu a Caça ao Tesouro, que nada mais era que uma cesta repleta de guloseimas.

Nas últimas semanas de aula a bagunça era a principal matéria e nela todos eram aprovados. O uso do uniforme já era facultativo, mas mesmo assim minha mãe não me permitia desobedecer. Eu colocava minhas peças no forro da mochila, chegava à escola e ia me trocar. Ela jamais ficou sabendo.

Daniela e Vando assumiram o namoro. Foi lindinho ver os dois caminhando de mãos dadas em um intervalo bem formal com as meninas da 8ª série dançando Spice up your life, chorando e tirando fotos. Sempre que podia comprava os quitutes que elas preparavam com o intuito de arrecadar fundos para a formatura. Até pôster de Leonardo Di Caprio, Hanson, Backstreet Boys e Spice Girls elas estavam vendendo a nós ‘fedelhas’ para poderem ter a festa que queriam.

A diretora, indulgente, permitiu que no último dia de aula, aproximadamente a primeira sexta-feira de dezembro, antes das provas de recuperação, o povo do 8º ano que se despediria da instituição organizasse uma festa a qual encerraria formalmente as atividades daquele ano letivo. Era proibido aparecer uniformizado. Minha mãe não queria me deixar ir, mas inventei que quem não comparecesse levaria falta.

Parecia até cenário de final de novela infantil quando todos os dilemas se resolvem, o casal de professores amado pelos alunos anuncia o casamento e a protagonista dança, sorri e se diverte como se nada tivesse acontecido. Eu não tinha um parzinho, mas me sentia muito bem acompanhada pelos meus amigos, até porque me entrosava com a galera da 8ª série, responsáveis pela trilha sonora.

Pulamos corda, comemos, fizemos a entrega de presentes do nosso amigo secreto. Eu peguei a Aline e resolvi dar-lhe uma agenda bem linda a qual até assinei e comprei uma cartela de adesivos fofinhos. Ela adorou.

Aline pegou a Mariana Franco e a presenteou com uma pulseirinha da amizade e um cd de Sandy & Junior, bem como Mari falou por tempos.

-Acho que vai riscar de tanto que vou ouvir.
-Vai ouvir pensando no bonitinho. – zoamos.
-Quem disse? Já nem gosto mais dele...

MF me pegou e me deu um mini álbum com algumas fotos que tiramos ao longo do ano.

-Que lindo!
-A camiseta do colégio estragou tudo, mas até que ficou joia.
-Eu adoro a camiseta do colégio. – me emocionei – Adoro esse uniforme porque foi vestida nele e pisando aqui que vivi o melhor ano da minha vida.
-Que profundo! – as meninas me aplaudiram querendo chorar.
-Foi nada não... – enxuguei as lágrimas – Não quero estragar esse momento lindo chorando, né? Fui tão feliz aqui...
-Ainda somos, bobinha. – Aline disse.

Aline tinha razão!

Minha mãe poderia mudar de ideia caso viesse me buscar e visse o quanto eu era feliz ali. Não fazia sentido retornar aquele colégio onde vivi os piores anos da minha vida.

As formandas da 8ª série dançaram Spice up your life e foram aplaudidas por todos. Um dia elas foram como eu, Aline e as Marianas. Chegaram ali ainda pequenas e ali viveram uma época única de suas vidas. Do balanço feito no calor do emoção, o saldo era muito positivo. Quase sempre acabava sendo. Para se ter uma ideia, se até Florinda e Jane, as duas mal humoradas estavam sorrindo, era uma tarde memorável.

Profs. Dani e Vando estavam juntinhos e dava até gosto de observá-los sentados com as mãos bem juntinhas, mas sempre respeitadores. Quem diria que o amor nasceria em meio a provas, trabalhos e tantas diferenças, mas nasce e deixa as pessoas mais bonitas, o ambiente mais cheio de vida, toda alegria que em casa desconhecia.

Prof. Vando era tido como rígido e inflexível, porém em público às vezes pagava micos e isso o deixava mais próximo de nós. Dizia odiar as ‘pragas da moda’ só para ver nós menininhas revoltadas e não tinha medo de nos fazer pensar, estudar de verdade e muito menos de castigar.

Prof.ª Daniela, mais doce, era de poucas palavras com os outros alunos e alguns até a consideravam chata e antipática, entretanto, comigo ela sempre foi um amor de pessoa e me deu alguns puxões de orelha, porém se emocionava quando avisei que iria voltar para o antigo colégio.

-Não acredito, Tita. Por quê?
-Porque minha mãe não gosta de me ver feliz.
-Eu discordo dessa última frase, Tita. As mães priorizam a felicidade dos filhos acima da própria, porém acredito que Meire não pode te tirar da escola se você é feliz aqui.
-É o que eu sempre digo. Eu sei ir sozinha, nunca chego depois da hora, não tiro nenhuma nota vermelha, tenho meus amigos aqui e não acho justo voltar para aquele lugar nojento onde sei que vão me bater, me maltratar...
-Talvez as coisas tenham mudado.
-Acho difícil.
-Sugiro que você não complique as coisas, Tita. Se você quer muito uma coisa, tem que lutar por ela. Não digo que vai ser fácil, mas se você se comportar e mostrar à dona Meire que ela está errada, com certeza serei sua professora no ano que vem. Se você precisar, meu anjo, eu posso conversar com a Meire, convencê-la, desde que você me prometa que vai continuar sendo esse doce de menina que é.
-Prometo.
-A luta não está perdida, então não há motivos para chorar.

Vera a diretora levou o marido e os filhos à confraternização e nem parecia aquela senhora taciturna do cabelo Chanel que só gritava e dava ordens. Mãe zelosa e atenciosa conversava conosco de igual para igual como se também fôssemos seus filhos e até se deixava chorar um pouco ao falar ao microfone acerca do ano que se encerrava.

-Nesse momento quero a atenção de todos.

E não precisou repetir novamente.

-Agradeço a presença de todos. A cada um que gentilmente colaborou para que essa festa fosse possível. Como diretora dessa escola, a responsabilidade é muitíssimo grande. Encaminhar os pequenos a fecharem esse ciclo de 4 anos e dizer a quem está partindo que foi um grande prazer vê-los crescer, participar das descobertas, alegrar-me com as conquistas de cada um de vocês e desejo-lhes muita sorte nesse novo ciclo que começa no ano que vem porque quero ver todos prosperando; quero ouvir falar muito bem de vocês no futuro. Essa é a missão da diretora e não apenas minha, de transformar a escola em um ambiente agradável, a segunda casa de vocês. A educação tem de vir de dentro de casa, com bons exemplos, devidamente aplicada, mas na ausência dos pais, temos de ser o porto seguro de vocês. No ano que vem mais pequenos chegarão, outra turma se formará e espero poder acompanhar mais uma vez também a quem está no meio do caminho..

João e os meninos continuavam fazendo macaquices e mesmo sendo bem menos sensíveis que as meninas, desabaram e se abraçaram. Eu ri um pouco. João era sempre tão machão e chorou assim como eu, como Aline, Mariana Franco, Mariana Oliveira, Rafaela. Quem não chorou, certamente, não estava ali e não viveu tudo aquilo.

Lembro-me até hoje de todas as músicas que tocaram: Beautiful life e Cruel Summer – Ace of Base, Wishing I was there e Torn – Natalie Imbruglia (sucessos daquele ano), Viva forever – Spice Girls (nós choramos), Stop right now, Wannabe, Say you’ll be there (nós dançamos com bambolês), As long as you loved me e Everybody – BSB, Beijo é bom, Vai ter que rebolar, Inesquecível, Era uma vez e Eu acho que pirei – Sandy & Junior, além de Claudinho e Bochecha e muito rock’n roll em geral por conta de João e seus amigos que curtiam Offspring, Raimundos, Charlie Brown Jr, Gabriel O Pensador, Titãs, enfim, respeitando todas as preferências, o que foi o diferencial.

A galera assinou minha camiseta e eu só não participei das ovadas porque minha mãe chegou antes das 17h30min e ainda reclamou porque demorei 1 minuto para entrar no carro.

-Por isso não gosto dessa escola. Viu só? Ainda está chorando...
-Estou chorando porque adoro essa escola e nem queria ter férias.
-Deve estar falando isso porque deve ter tirado nota baixa.

Meire não imaginava o quanto eu adoraria que o colégio fosse interno para poder dormir lá e só vê-la no máximo uma vez por ano.

-Só me atrasei um minuto, mãe. Hoje era o último dia de aula...
-Ainda bem que a partir do ano que vem às coisas voltam ao normal...

Para ela. Para mim era o fim dos sonhos novamente.

-Olha só que selvageria. Se eu visse você agindo dessa forma, te surrava pelada debaixo do chuveiro quente.
-Pois saiba que eles são gente muito boa e se divertem muito mais que você que fica só criticando e recriminando todo mundo. Saiba que eu gosto muito mais da Prof.ª Daniela do que de você.
-Então pede para ela te adotar.
-Eu bem que adoraria.

Levei uma bofetada tão forte que a marca da palma da mão ficou marcada no meu rosto por um bom tempo.

-Eu sou feliz nesse colégio e a senhora vai me tirar de lá pra colocar naquele inferno de novo aonde todo mundo me maltratava.
-Não invente mentiras, Renata. A professora sempre disse que você era o problema.
-Ela era uma mal comida, implicante...
-Da maneira como anda falando, já sei que o problema é essa escola.
-Não, não é.
-Não teime comigo porque eu sou adulta e tenho a razão.
-Por que não pode entender que sou feliz aqui?
-Porque sei que você não é. Não é e ponto. Sei que você não tem amigo nenhum, só sabe dar desgosto. Os professores daqui também disseram que você não tem jeito.
-Quem? Quero os nomes.

Meire hesitou. Punia-me quando eu mentia, mas quem a fiscalizaria?

-Quero saber quem falou de mim...
-Muitos. - respondeu com a voz seca e indiferentes.
-Pois saiba que sou uma das melhores alunas da sala e meus professores gostam muito de mim. Todos.

Tudo bem que as professoras Ivana e Neiva eram um tanto ríspidas, mas reconheciam meu esforço e para elas o que contava não era necessariamente desenhar como um artista e ser um craque nas quadras - ninguém é bom em tudo, mas TENTAR. É isso que faz de nós melhores do que um dia fomos ou quisemos ser. É quando teimamos em enfrentar nossos medos. Notas são apenas notas. Restringem-se ao boletim, é o suficiente para aquela mãe que usa os méritos dos filhos para se gabar às comadres. O importante de verdade não é o quanto você tirou numa prova em maio, mas a quantos corações você tocou, quantas risadas você deu, aqueles momentos que levará consigo por toda a existência, contando de quando em vez aos filhos e netos.

Meire era sempre fria, indiferente e dizia que eu era egoísta, problemática, mas nunca participou do meu mundo, das minhas descobertas (por ela eu seria uma dessas prisioneiras que nem a luz do sol vê) e não fazia questão de saber nada sobre mim. Ou eu fazia o que ela queria ou apanhava, apesar de que era surrada mesmo fazendo tudo certo. O problema era ela.

Enquanto esperava o sinal abrir, vi João espirrando catchup nas minhas amigas, o Prof. Vando zoando junto e chorei mais ainda. Aliás, chorei até dormir ouvindo as músicas da festa, pensando em como precisaria ser forte para retornar ao lugar onde mais fui infeliz e talvez até em um jeito de escapar do próximo ano letivo. Infelizmente, como minha própria mãe bradava: criança não tem querer!

FIM DA 1ª TEMPORADA

2 comentários:

  1. Poxa, sempre fico triste quando leio essas coisas que a Meire faz com a Tita... Talvez se ela mentisse pra mãe e dissesse que não gostava dessa escola , da profª Daniela, das meninas, enfim, a Meire deixaria a Tita ficar... que mulherzinha insensível :/

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    Respostas
    1. O abuso da Meire é infundado.
      Uma pena que a Tita não pensou na sua sugestão a tempo. Quem sabe com isso a Meire sentisse prazer em deixá-la nessa escola.
      :/
      Se o último dia de aula normalmente já é triste por si só, pra Tita ainda mais... passar o resto do ano com a Meire ninguém merece...

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