Mary Recomenda | A menina que roubava livros - Markus Zusak

Olá, respeitável público. Espero que vocês estejam muito bem. Hoje trago minhas modestas reflexões sobre um livro maravilhoso que li e recomendo. No entanto, o OCDM, por mais que possa trazer recomendações de livros e meus textos, não se trata de um blog literário, mas de um cantinho onde posso trazer muitos assuntos interessantes e diferentes. Muito obrigada por tudo! 🐞✍️🐞🪻


A menina que roubava livros, de Markus Zusak, publicado no Brasil pela Editora Intrínseca, 480 páginas, conta a história de Liesel Meminger, uma garota que testemunha os horrores da Segunda Guerra Mundial. Nesta obra somos apresentados a uma narradora um tanto peculiar, a Morte. E quando ela decide contar uma história, nós devemos parar para ouvi-la. 

As pessoas só observam as cores do dia no começo e no fim, mas, para mim, está muito claro que o dia se funde através de uma multidão de matizes e entonações, a cada momento que passa. Uma só hora pode consistir em milhares de cores diferentes. Amarelos céreos, azuis borrifados de nuvens. Escuridões enevoadas. No meu ramo de atividade, faço questão de notá-los. 
p.10

Por meio de uma linguagem repleta de sinestesia, nas quais sentimos pulsar o dom da vida, voltamos ao ano de 1939, para conhecermos o contexto histórico e os personagens que fazem parte da trama. A pequena Liesel, com então 9 anos, e seu irmão mais novo Werner, 6, estão sendo levados pela mãe para um lar de adoção, mas durante o percurso, o garotinho falece.

Em algum lugar, em toda aquela neve, ela via seu coração partido em dois pedaços. Cada metade luzia e pulsava sob a imensa branquidão.
p.26

Apavorada, Liesel Meminger chega a Molching e é conduzida à Rua Himmel, 33, para ficar sob os cuidados de Hans e Rosa Hubermann, seus pais de criação. Nunca mais tornaria a ter notícias da mãe e sabia muito pouco sobre o pai.

Na verdade, só havia uma coisa que ela sabia do pai. Era um rótulo que Liesel não compreendia.
Ela a ouvira várias vezes nos anos mais recentes.
"Comunista".
Havia pensões apinhadas de gente, salas repletas de perguntas. E aquela palavra. Aquela palavra estranha estava sempre presente em algum lugar, parada na esquina, espreitando o escuro. Usava ternos, uniformes. Onde quer que eles fossem, lá estava o termo, toda vez que seu pai era mencionado. Liesel era capaz de cheirá-lo e prová-lo. Só não conseguia soletrá-lo nem entendê-lo. Quando perguntara à mãe o que a palavra significava, ela lhe dissera que isso não tinha importância, que ela não devia se preocupar com essas coisas. Numa pensão, uma mulher mais sadia havia tentado ensinar as crianças a escrever, usando carvão na parede. Liesel ficara tentada a lhe perguntar o significado, mas isso nunca aconteceu. Um dia, a mulher foi levada para interrogatório. Não voltou.
p.32

Rosa é uma mulher sem tato, pouco dada a gracinhas, mas também preparada para encarar momentos de crise com resignação. Ganha a vida lavando roupa para famílias mais abastadas e com o avançar da guerra é dispensada por todos os clientes. Podemos perceber, a partir daí, um contraste social entre aqueles que tinham demais e aqueles que tinham muito pouco ou não tinham nada.

Assombrada por pesadelos, Liesel é amparada por Hans Hubermann, que a ensina a ler, escrever e também sobre a vida. Embora fosse descrito como uma pessoa facilmente esquecível, o tocador de acordeão é aquela pessoa que mesmo tendo tão pouco, ainda assim é capaz de dividi-lo com o outro, apiedar-se com a dor do outro, ou não teria aceitado esconder um judeu no porão de sua casa, mesmo correndo um enorme risco de ser descoberto pelas autoridades nazistas.

Ser judeu naquela época era um estigma que ninguém queria ter.

A Rua Himmel tem outros personagens marcantes, como o menino Tommy, o Sr. Pfifikkus — que vive assobiando, Frau Diller, sua loja e sua adoração irrestrita ao Fuhrer, no entanto, a figura que merece toda atenção é o inesquecível Rudy Steiner, filho de um alfaiate. 

Doido ou não, Rudy sempre esteve destinado a ser o melhor amigo de Liesel.

(...) 
Toda infância parece ter exatamente um desses jovens em seu meio e suas brumas. É o garoto que recusa a temer o sexo oposto, puramente porque todos os outros abraçaram esse medo, e é o tipo que não teme tomar decisões.
p.47

Sobrevivente da Primeira Guerra em partes por contar com a sorte, Hans Hubermann conheceu Erik Vanderburg, de quem se tornou amigo e herdou um velho acordeão. Vinte anos depois, os Hubermann acolheram o jovem Max, filho de Erik, no porão da Rua Himmel, 33. 

Foi impossível conter as lágrimas em várias ocasiões, contudo, destaco as passagens que contam o sofrimento de Max Vanderburg antes de chegar à Rua Himmel. Elas são de cortar o coração porque o referido livro é pura ficção, todavia, foram milhares de pessoas que viveram sub-humanamente esse inenarrável terror.

Ah, os bombardeios. Foi difícil não fazer uma imagem mental das pessoas ouvindo o alerta pelo rádio e precisando deixar sua casa para esconder-se em um porão e ainda assim não ter tanta certeza de sobrevivências. Crianças, adultos, pobres, ricos, a guerra igualava todos quando o que estava em jogo era a vida.

Mesmo diante de todo o sofrimento causado pela incerteza do futuro, Liesel adaptou-se relativamente bem à sua nova realidade e fez de Rudy seu melhor amigo. Dava um quentinho no coração saber que embora nunca tenham se declarado, um era o primeiro amor do outro. Eles crescem juntos e entram na adolescência no ápice do conflito, quando a guerra, vias de fato, chegou à Alemanha.

A vida se alterara da maneira mais louca possível, porém era imperativo que eles agissem como se não tivesse acontecido absolutamente nada.

Garantidamente, a Guerra e/ou a Morte bateu na porta de todos. Apoiadores do Hitler ou não, todos foram afetados. Uns mais, outros menos. Inocentes foram mortos, a vaidade desmedida de discursos eloquentes trouxe como consequência rastros de destruição. 

O final, mesmo que a Morte nos dê pistas do que vai acontecer, ainda é um golpe certeiro de dor. Acompanhar a partida de cada um foi tão indigesto, tão injusto. Ninguém merecia ter perecido daquela forma tão cruel, mas quantos faleceram na realidade, sem ter a mínima chance de escapar?

A obsessão cega por uma utopia doentia vitimou tantas pessoas e não levou a nada. Quem foi testemunha viva daquele inferno sabe da importância de conhecer a História para evitar tragédias desse porte no futuro e mesmo no presente, quando oportunistas se apropriam de suas habilidades em oratória para ludibriar os desiludidos e alcançarem o poder, vendendo ilusões e mentiras em benefício próprio.

Parece besteira o que direi, mas queria que a Anne Frank pudesse ter vivido até alcançar uma idade avançada, como a querida Liesel. Embora uma tenha sido real e a outra fictícia, os escombros da guerra esconderam histórias as quais deveriam ter chegado ao conhecimento do grande público, para que jamais nos esqueçamos das cicatrizes desses conflitos, dos desdobramentos dolorosos, pois o maldito legado da guerra é a destruição. 

Os seres humanos me assombram.
p.478

Certamente, a guerra não é o caminho mais estreito para alcançar a paz.

A leitura flui muito bem, no entanto, a temática pode despertar gatilhos em algumas pessoas, principalmente pela questão do luto.

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