Copa da confusão: capítulo I

 


O som de fundo era o pagode. Uma música dançante refletia o estado de espírito de Eduardo Meirelles. Tinha todo jeito de domingo: lojas fechadas, ruas vazias, o som de um ou outro morteiro ao longe, dia de vestir o manto rubro-negro e torcer. Clássico era para os corações fortes. O empate era justo, menos na final, quando na prorrogação vencia o resistente estrategista, mas hoje não era domingo: era sexta-feira. Não uma sexta-feira qualquer. Era a sexta-feira mais aguardada do ano do que a sexta de Carnaval. O mês, dezembro.

As atenções em sua maioria estavam voltadas para o Oriente Médio, onde ocorria a Copa do Mundo, a Copa dos Imprevistos, dos Azarões, dos prolongados acréscimos. Alemanha, Espanha e Bélgica caíram na fase de grupos, contudo, a esperança da sexta estrela mantinha os torcedores brasileiros certos de que um finalista já estava decidido. E haveria de ser o Brasil.

Ainda era de manhãzinha quando Edu ajudava Renata a carregar os sacos de carvão até a churrasqueira e colocava as sacolas em cima da mesa retangular:

— Estafa vou ter hoje de tanto comemorar… — iniciou Edu.

— Você alegou estafa para ganhar essa folga ilegítima? — Questionou Renata.

— Ilegítima, não. — Edu argumentou em defesa própria. — Calma lá. Eu disse que meu médico me prescreveu dois dias de descanso e nada mais justo porque tenho feito hora extra…

— Ah, então foi por isso que você me pediu para comprar o que faltava para o churrasco. Apronta e mete os outros no meio.

— Que não seja por isso… vai ser só um churrasquinho para assistir ao jogo, nada de mais.

— Espero que nenhum dos seus amigos seja idiota o suficiente para postar stories e se comprometer. — Ponderou Renata. — Queria ter essa confiança toda que o Brasil avança para a semifinal hoje, mas sou mais pé no chão.

— Deixa de besteira, amor. — Edu envolveu a amada em um abraço e depositou um beijo carinhoso nos lábios dela, afastando-se um pouco para fitá-la nos olhos: — O Brasil tem chances de ser campeão. Pode ser um jogo difícil, mas que jogo de mata-mata é moleza? Campeão que é campeão não escolhe adversário. Quanto mais difícil, melhor é o gosto da vitória!

— Espero muito que você esteja certo porque acabei de voltar do mercado e lá dentro estava uma loucura, era um empurra-empurra, parecia até prenúncio do Apocalipse Zumbi, tinha até gente brigando devido a bebida, isso sem falar na fila do caixa, no tanto de gente mal-educada querendo criar confusão. Quase me lamentei por esquecer a espingarda, no caso de um zumbi querer pegar meu lugar na fila.

— Eu, hein?

— Espero que o Brasil mereça todo esse empenho, o que eu duvido.

— Você vai apostar na derrota da seleção?

— Nos pênaltis.

— No Bolão do Rubão?

— Já apostei, aliás. — Confirmou Renata, rindo de nervoso.

só pode estar tirando com a minha cara!

— Estou com um pressentimento ruim em relação à partida de hoje, mas espero estar muito errada. Arrisquei 300 reais no meu placar… não quero me gabar nem nada… se der zebra, garanto uma bolada de dinheiro.

— Daqui a pouco a rapaziada está chegando… — Edu verificava as últimas atualizações dos amigos no grupo do WhatsApp. Com isso, reparou que algum amigo em comum compartilhou um link o qual os famosos Videntes L & L previram uma vitória acachapante do Brasil contra a Croácia nos pênaltis, cravando-o com um dos finalistas da copa do mundo.

— Esses aí não acertam nem papel no cesto do lixo… — debochou o jornalista, dando de ombros, sendo que alugou os videntes durante o resto do ano para saber o que diziam as cartas sobre o destino do Flamengo.

— E eu vou esperar a entrega das sobremesas porque não confio no senhor tentando se aventurar na cozinha. — Renata retirou-se.

Ouviu um morteiro ao longe. Pirata, o cachorro de estimação, ganiu. Edu acocorou-se ao lado do amigo e procurou acalmá-lo. Outro e mais outro tiro de morteiro.

— Por que não enfia esse morteiro no rabo, desgraçado? — Edu, irritado, desabafou.

O primeiro a chegar foi Quibão, que trouxe também o genro folgado.

— Bota água no feijão porque o Quibão veio almoçar. — brincou o próprio Quibão, revirando os olhos ao apresentar o genro a Edu. — E trouxe o estropício junto.

— Estropício não, Quibão. Caléquié, rapá? — Estropício mastigava um palito de dente e dava uns tapinhas nas costas do sogro. — O Quibão só tem tamanho.

— Ô de casa! — Kejadin veio com o celular, sendo que a determinação prévia de Edu Meirelles era a de deixar o aparelho desligado, sobretudo quando uma simples imagem publicada no Instagram poderia complicá-lo na emissora, todavia, de todos os amigos, Kejadin era o mais…, por assim dizer… desatento. — Só tenho hora para chegar.

Salamão foi o último a chegar.

— E aí, cambada? Cadê as minas?

— Minha esposa até queria vir, mas o patrão dela só liberou o pessoal para assistir ao jogo e depois voltar para a labuta.

— Eu também devia voltar para a labuta, mas não terei condições — justificou-se Kejadin. — Se a amarelinha ganhar, vou beber todas até cair, e se perder, também. Não tem fuga: o Brasil me obriga a beber.

— Unindo a fome com a vontade de comer — zombou o anfitrião.

— Falou o calistênio…

— Calistênio? — Quibão franziu o cenho.

— Acho que ele quis dizer abstêmio! — corrigiu Edu.

Edu havia reformado a área de lazer, ampliando o ambiente para trazer o televisor de última geração, dois sofás e alguns pufes espalhados pelo piso frio da parte externa da propriedade. Por falar nisso, o aparelho já estava ligado na RPN, que desde cedo exibia uma programação especial, sob o comando de Rubão, o narrador oficial das partidas da seleção, desde o mundial de 1990, no qual o Brasil amargou uma derrota para a Argentina.


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