Mary Recomenda | A biblioteca da meia-noite - Matt Haig

 

Capa da edição brasileira do livro (Reprodução: Editora Intrínseca)

Todas as coisas boas são selvagens e livres.
— Henry David Throreau

 A cada leitura recebemos um privilégio espetacular: o de viver outras vidas, em outros mundos, vidas de todos os tipos, em lugares distintos, desfrutar de grandes emoções, além de aprender, não importa qual seja o impacto desta experiência singular. E não poderia ser diferente.

Havia um bom tempo que A Biblioteca da Meia Noite estava na minha TBR e eu hesitava um pouco, receosa de ingressar na leitura com muitas expectativas e me decepcionar, porque às vezes começamos a ler esperando encontrar um potinho de ouro no final do arco-íris e, no fim das contas, fantasiamos demais.

Esta obra foi o meu primeiro contato com a escrita do autor, mas meses depois, li Um ratinho chamado Mika e Razões para continuar vivo, em ambos podemos extrair muita sabedoria, recomendo.

Somos apresentados a uma narrativa em terceira pessoa, o que possibilita ter uma versão mais ampla dos acontecimentos. Nora Seed é o nome da personagem principal. Tudo parece estar errado e fora do lugar: sozinha no mundo, demitida do trabalho, sem grandes perspectivas. Para ela, viver já não fazia o menor sentido e em uma noite desesperançosa, a protagonista tentar dar um ponto final ao sofrimento.

Nora, no entanto, desperta em uma biblioteca, mas não em uma biblioteca qualquer. Trata-se da Biblioteca da Meia Noite, na qual ela tem a possibilidade de viajar pelas possibilidades que lamentava não ter aproveitado na vida. 

"Quer dizer, as coisas seriam bem mais fáceis se a gente entendesse que não existe um certo modo de viver que nos torne imunes à tristeza. E que a tristeza é parte intrínseca do tecido da felicidade. Não dá pra ter uma sem a outra. Obviamente, elas vêm em diferentes graus e doses. Mas não há uma vida sequer em que a pessoa possa existir num estado permanente de felicidade absoluta. E imaginar que existe uma vida assim só acrescenta mais infelicidade à nossa vida."

A cada escolha, uma renúncia

Nora Seed foi dona de um pub, glaciologista, campeã olímpica de natação, uma musa do rock, dona de um vinhedo, trabalhou num abrigo para animais abandonados, viveu muitas realidades distintas e paralelas entre si nessa linha sutil que separava vida e morte.

Em cada experiência, no entanto, vinham os aprendizados, as reflexões e uma nova perspectiva sobre um arrependimento, um novo fato sobre ela mesma. Se você, assim como eu, gosta muito de compartilhar citações, prepare o marcador. São muitas passagens interessantes que tornam a imersão na leitura ainda mais profunda.

Você vive para realizar os seus sonhos ou apenas para cumprir as expectativas que os outros colocaram/colocam em cima de você?

O passado já foi escrito. Nem tudo depende só de nós, não podemos controlar as pessoas nem certas circunstâncias, mas podemos olhar para esta página em branco e a partir dela construir uma nova narrativa. Pode soar um tanto tolo para alguns, até um pouco clichê. Seria um clichê ainda maior não me valer de um para tentar explicar em poucas palavras que o passado é uma biblioteca em ruínas, só há cinza. Para ter um futuro feliz, as obras devem começar hoje, agora, só se aprende vivendo, quebrando a cara.

"Concluiu que não havia tentado pôr fim à sua existência porque estava infeliz, mas porque tinha conseguido se convencer de que não havia saída para sua infelicidade. Aquela, imaginou, era tanto a base da depressão quanto a diferença entre medo e desespero. Medo era quando você entrava num porão e ficava preocupado de a porta bater e se fechar. Desespero era quando a porta se fechava e se trancava atrás de você."

Essa vida que parece um beco sem saída é uma percepção aguçada pelo desespero. E as atitudes tomadas de forma impulsiva e precipitada (quase) nunca terminam bem. O que se almeja de verdade é um meio de aliviar a dor, a angústia existencial. Pode não parecer agora, com o mundo desmoronando sobre as nossas cabeças, quando não temos grandes perspectivas de futuro e estamos muito distante de sermos aquilo que queríamos.

No fundo, nós, quando jovens, queremos abraçar o mundo com os dois braços, queremos transformá-lo, sermos ouvidos, ter feitos grandes, queremos ser reconhecidos por sermos incríveis, porém, conforme os anos se passam, compreendemos que não podemos mudar o mundo, mas isso não nos impede de impactar positivamente a vida de uma pessoa, de um animal, lutar por uma causa, contribuir de alguma forma para a comunidade.

Depositamos expectativas altas e inatingíveis a nós mesmos. E são elas que nos expelem no submundo da depressão.

"Ser humano é resumir o mundo continuamente em uma história compreensível que mantém as coisas simples. Ela sabia que tudo o que os seres humanos veem é uma simplificação. Uma pessoa enxerga o mundo em três dimensões. Isso é uma simplificação. Os seres humanos são fundamentalmente criaturas limitadas e generalizadoras, vivendo no piloto automático, que tornam retas as ruas curvas em sua mente, o que explica por que se perdem o tempo todo."

Somos tão injustos com as pessoas e mais ainda com nós mesmos. Não deveríamos culpar nossos pais por nada. Há dores que eles carregam e nós nem ao menos desconfiamos. Todos fizeram o melhor que puderam, dentro do que entendiam e sabiam sobre a vida. Eles também sonharam alto, também se sentiram frustrados, também carregam culpas e arrependimentos.

É impossível não ferir as pessoas. Naturalmente, a questão aqui não é liberar a grosseria e a insensibilidade, mas convidar cada um a pensar no quanto magoamos aqueles que mais amamos, nem sempre de propósito, que vamos vivendo no piloto automático e nem sempre conseguimos verbalizar o amor que sentimos.

Se ser bem-sucedida, ter muito dinheiro, milhões de seguidores nas redes sociais e uma vida opulenta não preenche aquela lacuna imensa aberta na alma, significa que existir vai muito além de seguir um fluxograma perfeito e projetado por algum sistema invisível.

"Você precisa entender uma coisa se quiser ganhar uma partida de xadrez algum dia. E o que você precisa entender é o seguinte: o jogo só acaba quando termina. Não acaba se ainda há um único peão no tabuleiro. Se um dos lados tem apenas um peão e o rei, e o outro todas as peças, o jogo continua. E, mesmo que você seja um peão, e talvez todos sejamos, então deve se lembrar de que o peão é a mais mágica das peças. Pode parecer pequeno e banal, mas não é. Porque um peão nunca é só um peão. Um peão é uma rainha em potencial. Tudo o que você precisa fazer é encontrar um jeito de avançar. Uma casa por vez. E você pode chegar ao outro lado e desbloquear todos os tipos de poder."
"Você já se perguntou alguma vez 'como eu vim parar aqui?'. Tipo, você está no meio de um labirinto, e totalmente perdida, e é tudo culpa sua, porque foi você quem pegou cada um dos desvios? E você sabe que existem muitos caminhos que poderiam ter te ajudado a sair, porque você ouve todas as pessoas do lado de fora do labirinto que conseguiram passar por ele, e elas estão sorrindo e gargalhando. E, às vezes, você as vê de relance através das cercas vivas. Uma silhueta fugaz entre as folhas. E elas parecem tão felizes por ter saído, e você não se ressente delas, mas de si mesma, por não ter a mesma capacidade que elas tiveram em achar a saída? Já? Ou esse labirinto é só para mim?"

Espero não ser prolixa, mas essa sobrecarga de atribuições adoece. Pessoas ostentando suas vidinhas editadas nas redes sociais, cobrança para ser "produtiva", deixamos de ser pessoas para sermos seguidoras e consumidoras, ficarmos na plateia, aplaudindo forçadamente o que é imposto goela abaixo como "ideal de vida".

Ser um ponto fora da curva e pensar fora da caixa soa subversivo, mas ser igual a todo mundo é muito chato porque até para pertencer a um lugar, você precisa ser livre para ser quem é neste lugar. 

Ninguém tem a vida perfeita e instagramável em tempo integral, 7 dias por semana, como ninguém é tão insignificante e miserável que não tenha o que ensinar. Não sabemos tudo de tudo. Se a alegria existe, do outro lado da gangorra há a tristeza e elas fazem a alternância muito bem. Os excessos são ruins. Pouca chuva acentua a estiagem, chuva excessiva também é prejudicial. 

Sem mais delongas, esse livro foi um descanso para a alma. Ou se vive para ser feliz ou se vive para suprir as expectativas alheias. Aproveite e mergulhe neste pensamento. Não se deixe iludir, tire as próprias conclusões. 

A vida é sua.

O jogo só acaba quando termina.

Tem muitas peças no seu tabuleiro. A cada movimento, as possibilidades só aumentam. Você só precisa ser você e acreditar em você.

Reuni abaixo algumas passagens especiais no livro, pois se fosse trazer mais anotações que fiz, transcreveria muitas páginas do livro. Obrigada por ter lido essa modesta tentativa de falar sobre um livro interessante. ♥

"Os peixes são mais parecidos com os seres humanos do que a maioria das pessoas imagina.
Os peixes ficam deprimidos. Testes foram feitos com o peixe-zebra. Pegaram um aquário e desenharam uma linha horizontal na lateral, a meia altura, com um pincel marcador atômico. Os peixes deprimidos ficaram abaixo da linha. Mas, depois de receberem Prozac, esses mesmos peixes foram para cima da marca, para a parte superior do aquário, nadando de um lado para o outro, novinhos em folha.
Os peixes ficam deprimidos quando carecem de estímulos. Quando há carência de tudo. Quando ficam apenas ali, flutuando em um aquário que não se parece com nada.
Talvez ela não tenha tido nenhum incentivo para nadar acima da linha. E talvez até o Prozac — ou a fluoxetina — não tenha sido suficiente para ajudá-la a subir."
"Se você tem como objetivo ser algo que não é, vai sempre fracassar. Tenha como objetivo ser você. Parecer, agir e pensar como você. Ser a versão mais verdadeira de si. Abrace essa singularidade. Apoie, ame, trabalhe arduamente essa singularidade. E não dê a menor bola quando as pessoas ridicularizarem ou zombarem dela. A maioria das fofocas é inveja disfarçada. Mantenha a cabeça baixa. Mantenha a estâmina."
"Ela ficou imaginando agora como seria se aceitar incondicionalmente. Cada erro que já havia cometido na vida. Cada marca em seu corpo. Cada sonho não realizado ou cada dor sentida. Cada desejo ou anseio reprimido."

"Ela imaginou como seria aceitar tudo. Da mesma forma como aceitava a natureza. Do mesmo jeito que aceitava uma geleira ou um papagaio-do-mar ou o salto de uma baleia. Ela imaginou se vendo como apenas mais uma genial aberração da natureza. Como um animal senciente qualquer, dando o melhor de si.
E, ao fazer isso, ela imaginou como era ser livre."
"Então a fama era isso? Como um coquetel ao mesmo tempo doce e amargo de adoração e agressão? Não era de espantar que tantas pessoas famosas saíssem dos trilhos quando os trilhos viravam em todas as direções. Era como ser beijada e esbofeteada ao mesmo tempo."

"Ela se deu conta de que não importa o quão sincera a pessoa seja na vida, os outros só enxergam a verdade se estiver próxima o suficiente da realidade deles. Como Thoreau escreveu: “Não é aquilo para o que você olha que importa, mas o que você vê.”
"Acho que é fácil imaginar que existem caminhos mais fáceis. Mas talvez não existam caminhos fáceis. Só caminhos.
(...)
A cada segundo de cada dia a gente entra num novo universo. E a gente passa tanto tempo desejando que a vida fosse diferente, se comparando com outras pessoas e com outras versões de nós mesmos, quando, na verdade, a maioria das vidas contém um certo grau de coisas boas e um certo grau de coisas ruins.
Às vezes, só desabafar, falar sobre o que está acontecendo, é o suficiente para encontrar outros como você."
"O paradoxo dos vulcões é que eles são símbolos de destruição, mas também de vida. Assim que a lava reduz a velocidade e esfria, se solidifica. Com o tempo, se decompõe, transformando-se em solo — um solo rico e fértil."

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