SiMpLeSmEnTe TiTa 15 anos | Conversas de sexta-feira à noite

 1⁰ de março de 2002.

Hoje é aniversário da Helena e meu pai organizou uma festa-surpresa para ela, então, além de termos aquela conversa difícil, batemos perna para tratar dos últimos detalhes da comemoração.

Sofrer por antecipação é uma porcaria, mas não posso evitar.

Não fui muito com a cara dos pais da Helena, eles são intragáveis e têm uma mania feia de criticar todo mundo, colocar defeito, dar palpite que ninguém pediu. Foi por pouco que não dei uma garfada na mão de ninguém, mas vontade não faltou, viu?

"Essa é a Tita, minha enteada", Helena me apresentou aos pais. "Ela não é linda?"

"De rosto até que vai, mas está muito pesada para uma menina de 14, até parece ter uns 20...", retrucou a madrasta de Helena, que parece a Dona Redonda com manias de Olivia Palito. "Tem que perder um pesinho, senão vai ficar para a titia..."

"Que maldade!", opinou Helena. "Ela não precisa de dieta nenhuma e na hora certa conhecerá alguém especial, que gostará dela do jeitinho que ela é!"

"Tem louco para tudo nesse mundo!", debochou o pai dela.

Minha mãe, no lugar da Helena, teria rido com eles e aproveitaria para me gongar junto.

Compareceram alguns colegas de trabalho dos meus pais e por não ter ninguém da minha idade, fiquei meio de lado. Por sorte, a Júlia me ligou e nós ficamos um tempão de prosa. Falamos sobre tantos assuntos diferentes.

"Ah, amiga, manda comer tomate cru", aconselhou Júlia. "Tem gente que precisa arranjar o que fazer para deixar de azucrinar os outros..."

"A Deh está de cara comigo?"

"A Deh está de cara com a vida. Não é nada contra você, relaxa!"

Como assim, a Deh tem treze anos?

"A Deh entrou direto na segunda série por ser superdotada", explicou Júlia.

"Ela é um gênio?"

"Um gênio com exatas, sabe até consertar a televisão, mas não tem muito traquejo social. Some isso com os hormônios à flor da pele e entenderá. Bem, isso se você tiver uma irmã mais nova".

"Sou filha única."

"Seus pais são casados com outras pessoas e não tiveram filhos?"

"Não."

Para falar a verdade, quando eu tinha uns 3 ou 4 anos, pedia à minha mãe para ter uma irmãzinha, mas depois de um tempo me acostumei a ser filha única e hoje acharia estranho ter um bebê em casa.

"A Helena não pode ter filhos. Ela teve câncer de mama quando era mais nova."

"Perdi uma tia para o câncer de mama. Ela descobriu quando o tumor já tinha se espalhado para o cérebro."

Helena me contou ter descoberto o tumor quando estava com 21 anos e sentiu medo de morrer, contudo, submeteu-se ao tratamento e o câncer não voltou. Ela conheceu o papai porque ele acompanhava o Vô Roberval, que teve câncer de pulmão. Eles gostavam de conversar, tinham muitas afinidades e se apaixonaram.

Senti um pouquinho de confiança em contar à Júlia que meus pais são separados e tentei resumir o enredo para não me pagar de rainha do drama. Ela se indignou em saber que mamãe ainda me proíbe de conviver com papai, mesmo com guarda compartilhada.

"Claro que meus pais também brigaram, mas eles tentavam nos poupar de certas situações. O casamento já não era mais o mesmo, muitas coisas mudaram e o amor deles era forte a ponto deles entenderem que seguir daquele jeito só por nossa causa não fazia o menor sentido porque, casados ou não, eles continuavam nos amando e seriam melhores estando separados..."

"Você e a Deh sofreram muito?", minha pergunta foi muito óbvia, mas elas tiveram algo que não tive, a oportunidade de conviver com os pais biológicos unidos.

"Muito. A Deh tinha uns 7 ou 8 anos, eu estava com 10 pra 11. Foi muito doloroso, mas não havia o que fazer, a decisão já tinha sido tomada. No começo era tudo tão estranho, tão triste, como se tivessem arrancado nossos melhores sorrisos e plantado uma árvore de lágrimas dentro de nós."

"E hoje, como você encara isso?"

"Eles voltaram a ser amigos depois de um tempo e até se aconselham sobre relacionamento, se ajudam e tentam ser bem presentes nas nossas vidas. Eles são felizes e nós também. Continuamos sendo uma família feliz, só um pouquinho diferente das outras", concluiu Júlia.

Por mim, essa viagem da mamãe poderia se estender por mais tempo. Os telefonemas dela são breves prenúncios do inevitável retorno. Sofrer por antecipação é uma porcaria, mas não posso evitar.

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