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Não posso nem imaginar o que é passar por tudo isso, mas agora você não está mais sozinha. |
30 de março de 2002
A primeira e última vez que uma amiga dormiu aqui em casa foi no meu aniversário de 11 anos. Em junho já serão dois anos sem a Aline e ainda é bem difícil falar dela sem chorar.
Júlia e Andréa praticamente se convidaram para dormir aqui em casa, para me fazerem companhia. Deh está no banho e Ju assistindo o noticiário da TVTV porque depois dele começam as câmeras escondidas que ela, a Deh, a Van e o Dico amam. Estou me sentindo como nas novelas, onde a protagonista tem duas melhores amigas inseparáveis e umas pousam na casa das outras, comem gostosuras, se maquiam, pintam as unhas, dançam e tiram fotos.
Voltemos para o início. Mamãe não queria permitir a visita das meninas, alegando não tolerar libertinagem no honrado lar dela, mas Horácio defendeu-me, reiterando que as insinuações dela são descabidas, infundadas e caluniosas.
“A Júlia e a Andréa gostam de homem.”
“E andam com você?”, debochou mamãe.
“Quando eu tive um namoradinho, você armou um escarcéu em público e só faltou nos linchar, agiu como se eu escondesse uma bomba caseira na mochila.”
“Ah, aquilo não conta!”, ela abanou as mãos e fez aquela careta que eu odeio.
“É difícil de te entender, Meire. Quando a Tita tinha um namoradinho, você só faltou matá-la, acreditou num boato maledicente e trata a sua filha de forma tão deplorável que não é de impressionar a ninguém que a menina queira morar de uma vez por todas com o pai!”, desabafou o meu padrasto. “E este é um direito que você não pode suprimir com o seu autoritarismo. Ela tem todo direito de estar na companhia do pai.”
“Ela é quem sabe…”, a troglodita deu de ombros. “A porta da rua é a serventia da casa…”
Ficou resolvido que as meninas passariam o sábado de aleluia aqui e voltariam para casa só no domingo à tarde. Por isso, dediquei a sexta-feira santa para terminar as tarefas pendentes e ter o sábado de manhã para dar um jeitinho no quarto, passar aspirador, trocar a roupa de cama, tirar pó dos móveis e colocar os colchões no sol.
Às meninas chegaram lá pelas 15h. Minha mãe, cínica e dissimulada como sempre, mudou da água para o vinho, modulou a voz para aquele tom irritantemente agradável, teceu elogios para as meninas, agradeceu pela visita, me abraçou, foi até o mercado encher a geladeira de gostosuras e preparou brigadeiro de panela com pipoca. Fiquei com cara de tacho a princípio porque elas poderiam fazer mau juízo de mim, pensar que sou mentirosa, maldosa e daí para baixo.
“O que explica de repente esse surto de bondade?”, quis saber Deh.
“É óbvio que ela não vai mostrar as garras na frente dos outros, Deh.”, disse Júlia. “Ela é esperta e não vai escancarar os podres dela tão na cara dura!”
Mostrei às meninas o fundo falso do guarda-roupa, onde estão meus “tesouros”, uma caixa de sapatos onde estão as cartinhas das antigas amigas, cartões, um álbum de fotografias, essas coisas.
“Por que você sempre fala da Aline no passado?”, indagou Deh.
“Vocês brigaram e não se falam mais?”, insistiu Júlia.
“Ela… se foi.”
“Ela mudou de escola ou de cidade?”
“Ela morreu!”
As meninas lamentaram.
Contei-as como a nossa amizade começou, sobre o trio dos três mosqueteiros do sexto ano, do meu primeiro beijo, da separação dolorosa, da perda da melhor amiga e do inferno que foram os dois últimos anos, não sem chorar rios de lágrimas.
Elas seguraram nas minhas mãos, me abraçaram, não interromperam para me julgar, só me perguntavam de onde tirei forças para continuar vivendo depois de tantas pauladas da vida. A resposta é simples e direta: não sei, não tive escolha e não me considero uma menina forte pelos meus supostos feitos.
“Não posso nem imaginar o que é passar por tudo isso, mas agora você não está mais sozinha. Você tem a mim, a Deh, o Dico, a Pri e a Van.”
“O mundo é mais triste quando a gente não tem amigos.”, concordou Deh.
“Além disso, você conseguiu sair daquela escola horrível porque não desistiu do seu propósito. Tenho certeza de que onde quer que a Aline esteja, ela está orgulhosa de você.”
“Embora você diga que não, você está seguindo em frente, bem como ela iria querer. Já chegou a hora de você parar de abaixar a cabeça. Você não é nenhuma dessas bobagens que essas meninas invejosas falaram, não precisa provar nada para ninguém, nem se esconder de nada. Mesmo que você não veja ou que demore muito, cada uma vai ter da vida o que merece. E três vezes pior.”
Mamãe deve ter ouvido parte do desabafo porque depois do jantar, bem discretamente, me levou para um canto da cozinha e me arremedou.
“Contando às suas novas namoradas sobre a primeira? Não tem vergonha disso, não?”
“Elas são minhas amigas!”
“Duvido muito que elas continuem sendo suas amigas, como você insiste, você é muito baixo astral. Eu, no lugar delas, não seria sua amiga. De amarga já basta a vida.”
“Sua mãe não te ensinou que é feio ouvir conversa atrás da porta?”
“Falando mal da mão que te alimenta, putinha ingrata?”, Meire apertou meus braços com força e me sacudiu. “Difamando a única pessoa que te suporta nessa porcaria de mundo? Imagine só se eu decidisse abrir a boca e contar todos os seus podres, rainha do drama. Você tem sorte de eu ser uma pessoa boa e tolerante. Outra mãe já teria te colocado na rua há muito tempo.”
Quando as meninas apareceram na cozinha, a troglodita mudou até de semblante, me deu um abraço forçado e voltou a se pagar de mãe de comercial de margarina, mas não é tão esperta assim quanto julga ser porque Deh comentou sobre as marcas nos meus braços.
“Ah, ela é estabanada, vive se batendo por aí!”, mamãe abanou as mãos e forçou uma risadinha mais falsa do que uma nota de 30 reais.
Para evitar confusões, convidei as meninas para assistir televisão no meu quarto porque não teríamos privacidade na sala. Volta e meia dava para ver o vulto dela passando pelo corredor, ouvir o barulho do chinelo de pano, isso quando ela não abria a porta para dar incertas. Decerto pensou que nos encontraria numa orgia lésbica, regada a álcool, cocaína, heroína, porém o que viu foram três meninas sentadas em colchões, rindo das câmeras escondidas da TVTV, que no sábado passa das 23h até à 1h da manhã e faz o maior sucesso.
O Dico tem razão: o Marcão merece um Oscar (das câmeras escondidas). Ele tem o dom de fazer as pessoas rirem.
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