SiMpLeSmEnTe TiTa 15 anos | Filha do capiroto com a serpente do Éden


21 de fevereiro de 2002.

Ontem foi um dia muito curioso: 20/02/2002. Curiosidade boba: se ler a data ao contrário, ela continua a mesma; a Professora Paula nos falou sobre os palíndromos e deu alguns exemplos bacanas. Estou começando a enxergar a matemática com outros olhos e isso me parecia impensável até pouco tempo atrás. 

Tita quer saber se você já teve uma professora igual à Carmem. Conte-nos.


Papai, Helena e eu jantamos numa pizzaria e eu me empanturrei no rodízio. Eram tantos sabores diferentes que experimentei tudo porque não sou mulher de fazer dieta, não nasci para passar fome e virar um esqueleto ambulante. A noite foi tão boa que me deitei e adormeci, não sobrou nem tempo de escrever.

Mamãe reclama do meu peso e faz piadinhas sem graça sobre o meu corpo, se bem que ela sempre arranja um motivo novo para me magoar, reclama da minha voz, do meu jeito de segurar o garfo, qualquer motivo serve para me fazer chorar.

Sei que isso é errado de pensar, mas não estou sentindo falta dela. Por outro lado, sempre que pergunto sobre aquele evento de três anos atrás, papai desconversa, diz que aquilo já é passado e o importante é o agora. 

Já o dia no colégio foi uma porcaria: duas aulas geminadas de Física, uma de Química e, para fechar o dia, mais duas aulas seguidas de História, com uma professora intragável chamada Carmem. Ela se comporta feito sargentão e só falta nos obrigar a fazer 20 flexões e correr por meia hora em volta da cancha, entoando gritos de guerra.

REGRAS QUE ELA ESCREVEU NO QUADRO-NEGRO:

🚫 Proibido conversar.

🚫 Proibido usar bonés, gorros, chapéus e afins. 

🚫 Proibido comer e beber.

🚫 Balas, chicletes e pirulitos estão vetados. 

🚫Proibido fazer anotações no caderno enquanto estou explicando a matéria. 

🚫 Colar nas provas pode culminar na reprovação direta em minha disciplina. 

🚫 Não aceito trabalhos feitos na internet. 

🚫 Trabalhos feitos em folhas de caderno serão desconsiderados.

🚫 Entregar provas e trabalhos com a letra ilegível será punido com expulsão. 

🚫 Proibido usar canetas coloridas. 

🚫 O uso de fones de ouvido pode acarretar suspensão do estudante. 

🚫 Proibido sair da sala durante as aulas, mesmo para ir ao banheiro. 

🚫 A troca de bilhetinhos será punida com a perda de pontos na média. 

🚫 Proibido bocejar, chorar ou rir. 

Vou vistoriar caderno por caderno. Quem não fizer a lição leva bilhetinho para os pais ou responsáveis assinarem. Quem não trouxer o dever de casa feito e a assinatura vai para a sala da Raimunda. Ah, e um recado aos espertinhos de plantão: tenho amigos no FBI e eles descobrem de longe quem falsifica a assinatura dos pais, hein? Portanto, façam o dever de casa, pois quero tudo prontinho na próxima aula.” (foi tudo que anotei na aula dela, para variar…)

Bem que os meus amigos comentaram sobre a péssima reputação da Carmem, mas não acreditei num primeiro momento porque às vezes os jovens não gostam de um professor mais velho por pura maldade. Carmem é a exceção das exceções.

“Agora a Carmem vai começar a contar a história da vida dela”, debochou a Vanessa, a garota com o cofrinho aparecendo. Ela é muito divertida e sempre tem umas sacadas geniais. Por reprovar o primeiro ano duas vezes na matéria da bruxa, conhece bem a cobra criada.

“Vai contar a história da expulsão do pai dela do paraíso?”, quis saber Rodrigo.

“Ela nasceu de Adão e Eva?”, indagou Júlia. “Porque essa aí matou até os tiranossauros de desgosto”.

“Não, essa aí é filha do capiroto, nem precisa fazer DNA. Ela é filha do capiroto com aquela serpente do Éden”, explicou Vanessa, que prefere ser chamada de Van.

Carmem ouviu as risadinhas e interrompeu a explicação das normas para ameaçar os debochados de plantão que, na próxima gracinha, nosso grupo seria mandado para a sala da Raimunda.

Foram as duas aulas geminadas mais terríveis do meu currículo escolar! Parei de contabilizar os bocejos a partir do quinto, sempre cuidadosa para o sargentão não botar aquele olho arregalado de crocodilo em mim… devem ter sido milhares.

Andréa, ligeira, passou um bilhetinho por debaixo da minha carteira com o desenho de uma serpente verde, mal-encarada, com dois chifres vermelhos na cabeça, uma capa preta e a língua estalando. Retrato mais fiel daquela mulher abominável. Foi difícil conter a gargalhada.

Respondi a vários bilhetinhos, sentindo-me a maior subversiva do mundo por desafiar as inquebráveis normas da Carmem. Van, como sempre, não perdia a oportunidade de fazer graça da situação:

O que resta a fazer nessa aula é peidar, porque por enquanto não é proibido”.

A professora andava por todas as fileiras olhando para cada um de nós, como se fosse interromper a explicação a qualquer momento e nos surpreender com alguma pergunta. Se porventura a pessoa não sabia responder, era chamada de burra para baixo.

E não é que a Van soltou uma bufa tão fedida que a Carmem reclamou?

Vai fazer o quê? Colocar uma rolha no meu fiofó? Não presta segurar peido, faz mal à saúde”, argumentou Van.

Sua mal-educada, insolente, mau-caráter”, respondeu Carmem. “Meu nariz não é latrina”.

Meus ouvidos, muito menos”.

“Escute aqui, dentro dessa sala eu sou autoridade e não vou aceitar insultos de uma… uma… vulgar como você. Eu não deveria me surpreender, partindo da pior aluna que já tive nos meus longos anos de docência”.

“De doce você não tem nada”.

“E nem faço questão de agradar aluna vagabunda. Cuide-se porque não tenho nada a perder reprovando você de novo. Estou pouco me lixando se vocês gostam ou não de mim, o meu salário cai na minha conta todo dia 30, chova ou faça sol. Eu poderia estar aposentada, viajando pelo mundo, não aqui dando aula nessa turma em que poucos terão futuro. A maioria, se não for para o reformatório, estará no lucro”.

“Deixa estar, sua vaca. O mundo dá voltas. Quando eu me formar em advocacia e virar doutora, vou te processar”, finalizou Van, deixando a sala.

Vingativa, Carmem seguiu a aula normalmente e a surpresa foi que, quando tocou o último sinal, ela continuou falando feito gralha e até quis engrossar o tom com quem tentou sair, enfatizando que ninguém poderia deixar a sala antes de 12h30. 

Essa cria do capiroto deve achar que só estudamos a matéria dela por passar uma tonelada de deveres de casa e trabalhos. 

O mais triste é que amo História, sempre foi uma das minhas matérias preferidas, mas a Carmem não dá aula porcaria nenhuma, só vem com teorias da conspiração ridículas e a Van disse que a tendência é só piorar.

Conversando com ela no ônibus, descobri algo pior: a Carmem aplica prova-surpresa quando bem-quer e não tem dó de reprovar aluno, não, sobretudo quando não vai muito com a cara dele.

Escrevo ainda no início da tarde porque a bruaca quer que respondamos a 20 questões sobre pré-história no papel almaço para entregar amanhã. Se sobreviver a outras aulas da Carmem, volto amanhã!

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